CAPÍTULO
I
O
CRONISTA FERNÃO LOPES: VIDA E OBRA
1.
A VIDA DE FERNÃO LOPES
2. A OBRA DE FERNÃO LOPES
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. PEDRO I
FONTES DE LOPES PARA CRÔNICA DE D. FERNANDO
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. JOÃO
I
3. FERNÃO LOPES E OS OUTROS CRONISTAS DO PERÍODO
4. O VÍNCULO EMPREGATÍCIO DE LOPES
5. LOPES E A SUA CONCEPÇÃO DA HISTÓRIA
LOPES EM CONTRADIÇÃO COM O SEU TEMPO?
A HISTÓRIA ERA DETERMINADA POR DEUS
A ÍNFIMA PARTICIPAÇÃO DO DIABO
CAPÍTULO I
O
CRONISTA FERNÃO LOPES: VIDA E OBRA
1.
A VIDA DE FERNÃO LOPES
Escrever
sobre a vida de Fernão Lopes é tarefa bem menos complexa
do que sobre a sua obra. Ocorre que da história de sua vida quase
tudo se perdeu e o que restou está amplamente divulgado, conforme
se verá abaixo. Quanto à sua obra, entretanto, embora
já tenha servido de base a inumeráveis pesquisas e objeto
das mais variadas perquirições, se nos afigura impossível
esgotá-la, tendo em vista a riqueza de dados que ainda pode dar
às ciências, especialmente às humanas e sociais,
dependendo do enfoque de que seja objeto.
Apesar de sua estatura como o maior cronista português de todos
os tempos, pouco sabemos a respeito da vida privada de Fernão
Lopes. O conhecimento de sua naturalidade, sua idade na época
em que escreveu esta ou aquela crônica e os locais onde eventualmente
tenha estudado, juntamente com dados a respeito de seu tipo físico
e de seus hábitos, por certo nos possibilitaria a elaboração
de uma análise psicológica que, além de satisfazer
a curiosidade a nós imposta pelo costume de nos informarmos sobre
este tipo de dados, nos levaria a uma compreensão melhor de sua
própria obra. Lamentavelmente, entretanto, dispomos de muito
pouco de concreto a seu respeito. Sabemos que teria nascido pelos anos
de 1378 a 1383, ainda assim se concordarmos com a suposição
de Braamcamp Freire, de que Lopes “deveria ter de trinta e cinco
a quarenta anos quando, em 1418 lhe foi entregue a guarda das escrituras
da Torre do Tombo”. Outras informações obtidas por
Braamcamp Freire baseiam-se em documentos e não em meras suposições.
Lopes foi guarda-mor do arquivo da Torre do Tombo em 1418, escrivão
dos livros de D. João em 1419, escrivão da puridade de
Infante D. Fernando em 1422, contratado por D. Duarte em 1434, por catorze
mil reais, para colocar em crônica os feitos dos reis antigos;
e apesar de não escrever mais a partir de 1452, só foi
aposentado e substituído por Gomes Eanes de Zurara em 1454. Em
1459 temos a última informação sobre ele: contestou
o parentesco e deserdou seu neto Nuno Martins, filho do Mestre Martinho,
morto em África.
Esta última informação é intrigante por
desconhecermos os motivos que levaram Lopes a adotar tal atitude. Sabe-se
que o físico [médico] de D. Fernando, Mestre Martinho,
era filho de Lopes. Acompanhou o Infante Santo na desastrada campanha
empreendida pelos portugueses a Tânger, onde veio a falecer. Deixou
um filho - Nuno Martins - que embora tivesse nascido de mulher solteira
- Maria Afonso - tinha sido legitimado por carta de D. Afonso, expedida
em 1457. O simples fato de seu filho não ter se casado com Maria
Afonso não poderia ter sido o motivo da rejeição.
Lopes estava acostumado a narrar dezenas de casos idênticos e
em raras oportunidades hostilizou os bastardos. Portanto, a não
ser que aceitemos que esta Maria Afonso fosse realmente uma “mulher
que houvera filhos de desvairados pais e (...) que dormia com quem lhe
prazia”, não temos outra explicação para
que Lopes tenha repudiado o neto. Que outros motivos, afinal, poderia
ter? Predileção por algum outro herdeiro? Não o
cremos, apesar de que o cronista parece ter ficado satisfeito em deserdar
o neto, não se importando muito com o fato de jamais ter conseguido
anular a carta de legitimação.
Nessa época, Lopes já deveria ter por volta de oitenta
anos. Quanto tempo mais viveu, o que mais fez, como morreu, a quem,
afinal, deixou a sua herança, são coisas que nos ficaram
desconhecidas. Por ironia, ele que informou tanto sobre a vida dos outros,
nada deixou sobre a sua própria e, se algo deixou, perdeu-se.
A História parece mesmo ser incapaz de resgatar o passado em
sua totalidade, todavia, resta-nos o consolo de podermos, através
da apreciação de sua extraordinária obra, conjeturarmos
mais alguns traços de sua biografia.
Quando lemos sua obra, especialmente a Crônica de D. João
I, percebemos que Lopes introduziu em sua narrativa o elemento popular
- coisa incomum se tivermos em conta outros cronistas medievais - e,
com tanta ou maior facilidade, vamos detectar uma deferência muito
especial a Lisboa e aos lisboetas. Essas observações nos
levam a supor que Lopes, embora findasse os seus dias em certa abastança,
tivera uma origem humilde e nascera na cidade de Lisboa. Sua ascensão
e conseqüente convivência na Corte, a nosso ver, deve-se
a seus estudos. Embora ignoremos onde, quando e como tenha estudado,
devemos admitir que não haveria condições de ter
atingido o seu nível intelectual sem que tivesse freqüentado
alguma boa escola.
2.
A OBRA DE FERNÃO LOPES
Sobre
a obra de Lopes temos mais o que falar. Comecemos pela polêmica
relativa à quantidade de crônicas que escreveu. Em algumas
passagens das crônicas que irrefutavelmente lhe são atribuídas
[Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I], Lopes
nos induz a crer que narrou as histórias de outros reis além
desses mencionados. Pretendendo imortalizar aqueles que participaram
da defesa do reino português contra Castela, afirma que desta
mesma forma procedeu ao narrar os feitos de D. Henrique de Borgonha:
“como no começo desta obra nomeamos fidalgos algu s, que
ao Comde do Hamrrique ajudarom gaanhar a terra aos mouros; assi neeste
segumdo vollume diremos hu s poucos dos que ao meestre foram companheiros
em deffender o rreino...”
Em outra passagem, ao narrar uma façanha de um cavaleiro português,
Gil Fernandes, Lopes compara-o com o avô, homem muito corajoso,
“...segundo dissemos na estoria d'el-rrei dom Affonsso o quarto...”.
Em outra oportunidade, novamente Lopes refere-se a D. Afonso: “Morto
el-rei Dom Afonso, como haveis ouvido...”. Ao enumerar os filhos
de D. João I, Lopes deixa-nos a impressão de que escreveu
também uma crônica sobre um deles: “E ouve el-Rey
outro filho, que chamaram Ifante Eduarte (...) o qual reinou depois
de seu padre como ao diante ouuyrees”. E, finalmente, Lopes aventa-nos
a possibilidade de ter escrito a crônica de Nuno Álvares
Pereira: “Este Nuno Alvarez era filho do prior dom Alvaro Gonçallvez
Pereira, de cuja geeraçom e obras mais adeante entendemos trautar...”.
Essas alusões feitas por Lopes levaram alguns autores a sérios
equívocos. Damião de Goes e Francisco M. Trigoso, por
exemplo, procurando fazer justiça a Lopes, consignando-lhe a
autoria das obras que realmente escreveu, conseguiram demonstrar que
até mesmo a crônica de D. Dinis, publicada como sendo de
Rui de Pina, era de Lopes; contudo, acabaram atribuindo-lhe também
obras que não redigiu, como é o caso da crônica
de D. Duarte. Braamcamp Freire, que pesquisou com muito rigor a vida
e a obra de Fernão Lopes, incumbiu-se de desfazer este equívoco,
tomando por base o testemunho de Azurara, segundo o qual Lopes somente
escreveu até as pazes firmadas com o reino de Castela. Desfeito
esse equívoco, entretanto, Braamcamp Freire incorreu em outro:
não admitindo que Lopes fosse capaz de plagiar, atribuiu-lhe
a autoria da Crônica do Condestável. Fê-lo através
de um trabalho paciente, comparando os capítulos da Crônica
do Condestável com o que Lopes havia escrito sobre o conde nas
Crônicas de D. Fernando e D. João I. Como são exatamente
iguais, não teve dúvida em atribuir a Lopes a Crônica
do Condestável, deixando-se aparentemente levar pela já
mencionada promessa do cronista de que falaria da geração
de Nuno Álvares Pereira quando escrevesse sobre os feitos do
Mestre de Avis. Todavia, hoje é ponto assente que Lopes não
escreveu a Crônica do Condestável, apenas plagiou. Contudo,
Braamcamp Freire, não quis admitir isto: “...esquecendo-se,
no seu entusiasmo pela obra do cronista, de que a noção
moderna de plágio de forma alguma se pode aplicar à produção
de um historiador medieval”.
Não se pode, contudo, desmerecer, em hipótese alguma,
as pesquisas destes historiadores. Mesmo ultrapassados nos passos acima
esclarecidos, contribuíram largamente para restituir a Lopes
a autoria de trabalhos que os Pina haviam usurpado. Hoje, graças
a eles, parece não existir dúvidas de que Lopes escreveu
realmente outras crônicas além das de D. Pedro, D. Fernando
e D. João I, embora o que se nos afigura mais correto é
proceder como Luís Lindley Cintra e atribuir-lhe a coordenação
e orientação dos trabalhos relativos à elaboração
de todas as crônicas dos sete primeiros reis portugueses. Afinal,
não é demais lembrar, era habitual naquela época,
a existência de colaboradores preparados para a consecução
de uma crônica, sob a supervisão de um compilador-autor.
Para não cairmos em contradição, é necessário
abrirmos um parênteses para esclarecer que se, de fato, os arquivistas
da Torre do Tombo, descendentes de Rui de Pina, usurparam obras alheias,
como acima mencionamos, por eqüidade, o mesmo tratamento que demos
a Lopes inocentando-o de plágio, devemos dar a eles, porque era
então comum também refundir trabalhos e transcrevê-los,
assumindo a autoria. Nas crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D.
João I, Lopes não copiou porventura outros autores? Não
copiou Ayala? Não transcreveu trechos completos da Crônica
do Condestável, cujo autor desconhecemos? Isso tudo, entretanto,
não lhe tira méritos e, apesar de não pretendermos
aprofundarmo-nos nessa questão, não queremos deixar passar
a oportunidade de ressaltar as diferenças individuais dos cronistas
plagiadores, pois enquanto muitos deles estropiaram as obras copiadas,
Lopes deu-lhes novo estilo, melhorando a estruturação
da frase. Tomemos ao menos um trecho em que Lopes copia, para constatarmos
nossa afirmação.
Iniciemos com o capítulo XI da Crônica do Condestável:
“...de tão bom criado que em vós fiz, não
podia sair senão tal cousa e outras melhores; e esta feúsa
houve eu sempre em vós e hei, porque eu pera mais vos tenho e
pera muito maior cousa; mais quero que saibas que a mim não praz
de vós serdes em tal cousa...”
Vejamos agora o mesmo trecho, da forma como aparece no capítulo
CXXIII, da Crônica de D. Fernando:
“... de tão bom criado que em vós fiz não
podia sair senão tal obra e outras melhores, e esta feúsa
houve eu sempre de vós e hei, mas quero que saibas que a mim
não praz de vós em tal feito, porque eu pera mais vos
tenho e pera maior cousa de vossa honra que entrardes nesta requesta.”
Como bem observou Hernâni Cidade comparando os trechos das crônicas
acima, “onde a velha crónica tem cousa...cousa...cousa...
? escreve Fernão Lopes ? obra... feito...requestra...”,
tornando a frase muito mais agradável ao leitor.
Retomando a questão do plágio, queremos concluir afirmando
que o historiador não pode apreciar com valores de sua época
as atitudes tomadas por seus antecessores de tempos recuados, sem correr
o risco de cometer graves injustiças.
Em resumo, sobre a polêmica em torno da obra de Lopes, podemos
afirmar que as conclusões mais recentes dão conta de que
muito provavelmente a sua equipe tenha compilado as crônicas dos
sete primeiros reis portugueses e que ele próprio trabalhou com
as crônicas de D. Dinis e D. Afonso IV. De nossa parte, pelos
estudos que realizamos, ficou-nos a forte impressão de que Lopes
realmente, ao longo dos trinta e seis anos em que esteve trabalhando
na Torre do Tombo - 1418-1454 - escreveu sim outras crônicas além
das de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, mas na realização
desta pesquisa, optamos por trabalhar apenas com as três últimas
mencionadas, obviamente pelo fato de não terem
desaparecido como as demais e, mesmo assim, ressaltando que a crônica
de D. Pedro difere das outras duas, tanto no que concerne ao estilo,
como no que diz respeito à utilização de fontes
comprobatórias.
FONTES
DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. PEDRO
Quanto
ao estilo não parece haver dúvidas de que Lopes evoluiu
naturalmente de um estilo seco, usado na crônica de D. Pedro,
para um mais animado e vivo nas de D. Fernando e de D. João I.
Quanto aos documentos utilizados, ao que parece, quanto mais recuava
no tempo menos probabilidades tinha de conseguir fontes fiéis
aos seus propósitos, apesar de todo o seu esforço:
“Oo! com quamto cuidado e dilegemçia vimos gramdes vollumes
de livros, de desvairadas limguagees e terras: e isso meesmo pubricas
escprituras de muitos cartarios e outros logares nas quaes depois de
longas vegilias e gramdes trabalhos, mais çertidom aver nom podemos
da contheuda em esta obra.”
É certo que Lopes está se referindo à crônica
de D. João I; todavia, não foi menos cuidadoso e diligente
com relação aos outros trabalhos que executou. Aconteceu,
no entanto, que não encontrou, para escrever sobre D. Pedro,
tantos documentos como para as outras duas obras posteriores, daí
a nossa afirmação supra de que esta obra difere das subseqüentes.
Então, para superar essa lacuna, muitas vezes recorreu ao imaginário
popular, como se verá oportunamente.
Entretanto, embora em menor quantidade, a Crônica de D. Pedro
foi escrita com base documental. Não há dúvidas
de que Lopes se utilizou amplamente da Crônica de Pedro, o Cruel,
de autoria de Pero Lopes de Ayala, da qual transcreveu trechos inteiros
ou simplesmente os resumiu, assim como de uma crônica portuguesa
que relata o reinado de D. Pedro e coloca o monarca como o pacificador
de Portugal. De vários conventos portugueses, teriam vindo contribuições
importantes dentre as quais destaca-se o Livro de Noa, composto em Santa
Cruz de Coimbra. De alguma miscelânea de apólogos morais,
Lopes teria se aproveitado para contar a forma como D. Pedro aplicava
a justiça. De algum cancioneiro, Lopes teria retirado a base
da narrativa sobre o episódio envolvendo um bispo do Porto com
uma mulher casada, que custou um grande vexame ao prelado, pois D. Pedro
pretendeu açoitá-lo, castigando-o com as próprias
mãos, como se verá mais detalhadamente adiante. Além
dessas fontes, outros documentos utilizados teriam sido os Livros da
Chancelaria - de onde Lopes teria se aproveitado de ordens e editos
reais e negociações diplomáticas - as bulas papais,
as cartas diplomáticas originais, os testamentos, os alvarás,
as cartas de doações. E, finalmente, Lopes teria apreciado
moedas da época de D. Pedro e observado pessoalmente os túmulos
de Inês de Castro e D. Pedro, dos quais faz minuciosa descrição.
A leitura mais apreciada na Idade Média, sem a menor sombra de
dúvida, versava sobre os feitos cavaleirescos e - dada a inexistência
de ações militares no reino português, que propiciassem
tais narrativas, entre 1357 a 1367, período do reinado de D.
Pedro - Lopes foi buscar nas disputas internas pelo trono de Castela
e na luta entre este reino e o de Aragão, o enredo para a maior
parte de sua Crônica de D. Pedro I. Nesta circunstância
reside a explicação de Lopes ter utilizado com tanta freqüência
a crônica escrita por Ayala para redigir a sua, de D. Pedro. De
fato, praticamente um terço desta crônica diz respeito
a assuntos castelhanos, embora a narrativa esteja sempre articulada
a interesses do reino português. Com estas explicações
esperamos ter esclarecido ainda mais, que o estilo de Lopes na Crônica
de D. Pedro difere das subseqüentes: sua fidelidade à fonte
levou-o a copiar literalmente Ayala, o que se traduz num estilo mais
seco, muito diferente do esmerado estilo encontrado na Crônica
de D. João I. Além do estilo, a questão da fidelidade
às fontes suscita um outro problema. Copiando, simplesmente,
Lopes não pode dispor de elementos que comprovassem a veracidade
dos depoimentos de Ayala. Desta forma, a verdade do cronista português
acabou sendo a verdade do cronista castelhano. Ora, sabendo que Ayala
não teve a mesma insistente preocupação que Lopes
em torno da veracidade dos fatos, torna-se fácil concluirmos
que a Crônica de D. Pedro, além de perder em estilo para
as posteriores, perdeu também em valor histórico.
Todavia, não param por aí os prejuízos causados
à verdade histórica, pelo uso de fontes pouco confiáveis,
ao menos no que concerne à exatidão dos acontecimentos.
Segundo já citado acima, Russell menciona que Lopes, para escrever
a Crônica de D. Pedro utilizou-se de uma obra homônima,
mas não nos fornece nenhuma informação que nos
ajude a concluir qualquer coisa sobre a sua autoria e, principalmente,
sobre a sua fidedignidade. Que dizer então das miscelâneas
de apólogos e das cantigas de escárnio? Evidentemente
que essas obras não podem se prestar ao esclarecimento da verdade
científica pretendida por Lopes em suas crônicas posteriores.
Convém ressaltar que, absolutamente, não estamos querendo
dizer que estes tipos de obras não tenham valor para a história,
pois, como veremos adiante, elas são importantes especialmente
para o resgate do imaginário social de uma época. O que
ora estamos enfatizando é que esses não são documentos
fidedignos para a apuração da veracidade dos fatos.
Para isso acreditamos terem sido mais úteis a Lopes, os documentos
existentes na Torre do Tombo e já mencionados uma vez: livros
de chancelaria, bulas papais, cartas diplomáticas, testamentos,
alvarás, etc. Úteis também, porém nem sempre
fiéis, foram os livros compostos pelos monges, dos quais mencionamos
o Livro de Noa, que cuidadosamente apontavam datas e tipos de fenômenos
ocorridos.
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. FERNANDO
Também
na elaboração da Crônica de D. Fernando, Fernão
Lopes utilizou-se de fontes narrativas e documentais mas com alterações
de ênfase. Russell, através de uma leitura muito atenta
dessa crônica, conseguiu um arrolamento praticamente completo
das obras das quais Lopes se utilizou. Das fontes narrativas com certeza
podemos citar a Crônica do Condestável, usada para a elaboração
dos últimos capítulos. De Ayala mais uma vez aproveitou-se
Lopes, mas na Crônica de D. Fernando, com muito mais parcimônia
do que na do rei antecessor. A exemplo do que sucedera ao escrever a
Crônica de D. Pedro, em virtude da citação minuciosa
da data e hora, antes da narração de fenômenos naturais,
sabemos que Lopes utilizou-se de fontes analíticas para informar
sobre uma tormenta que destruiu algumas naus no Porto de Lisboa. Utilizou-se
ainda de livros de linhagens, folhetos de prelados fiéis ao papa
de Roma, uma obra de Martim Afonso de Melo, uma outra obra que teria
servido como que uma espécie de matriz não só para
Lopes, como também para o compositor do Livro de Noa.
Mesmo seguindo pari passu as informações de Russell, não
nos parece inoportuno acrescentar alguns esclarecimentos sobre o que
foi acima exposto. Quanto à presumível matriz do Livro
de Noa, obra já mencionada quando falamos sobre as fontes utilizadas
por Lopes na redação da Crônica de D. Pedro, lembremos
que é um livro analítico, ou seja, uma obra onde eram
referidos assuntos variados que eventualmente chamavam a atenção
de algum historiador monástico quanto a este ou aquele ano. Era
comum, nestes livros, a descrição de fenômenos da
natureza, especialmente os catastróficos, precedidos impreterivelmente
da data e hora em que ocorreram. Esse livro de Noa não é
original; há indícios de que foi copiado de uma outra
obra congênere, que se perdeu, e foi essa obra que serviu como
fonte ao livro de Noa e que acima nomeamos como sendo matriz, que também
teria servido a Lopes para a elaboração de sua Crônica
de D. Fernando.
Vejamos em exemplo, cotejando trechos, respectivamente, da Crônica
de D. Fernando e do Livro de Noa:
“...e dizem alguuns que mandou fazer queixame ao Papa, e a ElRei
de Ingraterra, e a seus filhos, do mal e desomrra que Dom Henrique avia
feito a elRei Dom Pedro seu primo; e que a esto forom Dom Martim Gil
bispo Devora, e o almirante, quamdo os el Rei mandou em messagem ao
Principe e a outros senhores em duas gallees.”
“ElRey Dom Fernando mandou seu recado a todolos Reys de Espanha,
e mandou querelar ao Papa, e tambem ElRey de Inglaterra, e a seus filhos,
que lhe pesasse o mal, e morte, e deshonra, que o Anrique havia feito
em elRey D. Pedro, e na Caza de Castella....”
Sobre a obra escrita por Martim Afonso de Melo o que se pode dizer é
que era uma crônica versando sobre o reinado de D. Fernando e
que a conhecemos tão somente em virtude das citações
de Fernão Lopes e Zurara. Ainda assim, no que concerne a Lopes,
conhecemo-lo muito mais pelas críticas que dele faz que por outro
motivo qualquer. Ao que parece Martim Afonso era um escritor parcial,
ao menos se dermos crédito a Lopes.
Fontes interessantes, muito usadas por Lopes e que chegam inclusive
a tornar marcantes algumas de suas posições, são
os folhetos dos prelados fiéis ao papa de Roma. A evidência
do uso de tais folhetos nos é fornecida por Lopes no capítulo
CIX de sua Crônica de D. Fernando, onde, após afirmar que
o Cisma de Avinhão deixou infinitas dúvidas entre os cristãos,
esclareceu que:
“...posto que muitos doutores, grandes leterados, per certas e
fortes rrazoões provassem asaz claramente em seus trautados que
sobr'esto fezerom este Urbano seer verdadeiro papa e nom outro: assi
como Joham de Liniano e Bertollameu de Saliceto e outros que longamente
arguindo sobr'esto determinarom a verdade.”
Não temos nenhuma informação que possa demonstrar
a existência de folhetos que circulassem em Portugal, na defesa
da legitimidade do papa estabelecido em Avinhão. O que sabemos
é que Portugal, durante o reinado de D. João, sempre defendeu
a mesma posição da Inglaterra no que concerne ao Cisma,
ou seja, esteve ao lado do papa romano. D. Fernando, todavia, nem sempre
esteve do mesmo lado, ora tendeu para Avinhão, ora para Roma,
de acordo com as conveniências políticas do momento. Quando
houve o Cisma, o rei português optou pela obediência ao
papa de Avinhão, juntamente com o rei D. João de Castela,
seu aliado naquele momento. Mas logo em seguida, estando em guerra com
Castela, quando recebeu ajuda inglesa, em virtude dos ingleses estarem
com o papa de Roma, passou a obedecê-lo. Mais tarde, quando firmou
as pazes com os castelhanos, voltou novamente a considerar verdadeiro
o papa de Avinhão. De qualquer forma, para Lopes, o verdadeiro
papa era o romano, daí utilizar-se dos folhetos que expressavam
a mesma opinião.
Feitas essas considerações sobre as fontes narrativas
utilizadas por Lopes para composição de sua Crônica
de D. Fernando, resta-nos tratar a respeito das fontes documentais e,
no que tange a esse assunto, ressaltarmos a forma como foram utilizados
os livros de chancelaria, porque, de maneira geral, as demais fontes
em nada diferem das que foram usadas na Crônica de D. Pedro I,
exceto na quantidade, muito maior na Crônica de D. Fernando. Os
Livros de Chancelaria foram conservados na íntegra pelo menos
até 1459, diga-se de passagem, graças a D. Fernando que,
imitando o exemplo dado pelas chancelarias de Aragão e Navarra,
salvou os arquivos medievais portugueses. Até 1378 era costume
os arquivos acompanharem os monarcas por onde quer que fossem. Nessa
data, D. Fernando estabeleceu uma sede fixa para a chancelaria real,
na Torre do Tombo. Em 1459, nas Cortes de Lisboa, resolveu-se mandar
fazer versões resumidas dos livros de chancelaria, o que resultou
numa redução considerável de informações,
pois que, de setenta e cinco volumes das chancelarias de D. João
I, D. Fernando e D. Pedro, acabaram restando apenas oito. Como o nosso
cronista, para escrever as suas crônicas, utilizou-se largamente
das coleções antigas, atualmente “... é a
Fernão Lopes que temos de recorrer se quisermos descobrir o teor
de alguns dos mais importantes documentos das chancelarias desaparecidas”.
FONTES
DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. JOÃO I
Prosseguindo
na questão das fontes utilizadas por Lopes, examinaremos as que
utilizou para escrever a sua Crônica de D. João I, em relação
à qual devemos de pronto ressaltar que, para essa crônica,
dispôs Fernão Lopes de muito maior quantidade de textos
narrativas do que para as anteriores. O próprio cronista, para
considerar o efetivo à disposição dos reis de Castela
e Portugal na batalha de Aljubarrota, nos revela que precisou fazer
uma seleção das obras lidas para, finalmente, concluir
pelo número que achou mais próximo da realidade. No início
do capítulo XXXVII, Lopes nos informa que:
“foi vista sobresto a composiçom de muytos, posto que delles
rudemente fallassem...”
E mais adiante acrescenta:
“E nos (...) de muyto reuolver de liuros com gram trabalho e diligemçia
ajuntamos as mais chegadas aa razom, e em que os mais dos autores pella
moor parte comsentem.”
Quer dizer, Lopes leu muitas obras, comparou-as, considerou exatas as
informações coincidentes em várias delas ou simplesmente
adotou aquelas que julgou mais corretas. Lamentavelmente, entretanto,
a maioria destas versões apreciadas por Lopes, desapareceu, não
nos ficando sequer a possibilidade de uma eventual averiguação
através de alguma citação capaz de as identificar.
Contentemo-nos com o que é possível apreciar.
As duas fontes narrativas mais importantes que Lopes utilizou foram
a Crônica do Condestável, na sua versão original
e a Crônica do doutor Christoforus. Falemos sobre esta última,
já que sobre a do Condestável tratamos anteriormente.
Christoforus foi um eclesiástico que relatou especialmente os
feitos militares do reinado de D. João I. Parece ter sido um
escritor muito bom, pois, em caso contrário, por certo, não
teria sido tão prestigiado pelo severo espírito crítico
de Lopes que o citou textualmente várias vezes. Coisa incomum,
uma exceção, pois somente ele mereceu tal tipo de referência.
Atitudes contrárias eram mais comuns a Lopes, pois criticava
veementemente os autores que não escreviam de acordo como havia
ocorrido o acontecimento. “Com os geolhos em terra peça
perdom aa verdade aqueles que escreveram errada opinyom”.
Mais importante de que a confiança que o Doutor Christoforus
despertou em Lopes, foi a influência que exerceu sobre ele. Já
dissemos que Christoforus era um prelado. Ao escrever a sua história
do reinado de D. João I, colocou muito claramente a posição
da Igreja portuguesa diante da crise sucessória que ameaçou
a coroa após a morte de D. Fernando, em 1383: ardente nacionalismo
e defesa do papa de Roma. Para Christoforus os castelhanos não
eram apenas invasores que tentavam usurpar a coroa, eram hereges cismáticos.
De fato, torna-se muito difícil enumerar as páginas em
que Lopes assumiu posições pró-Roma e quase impossível
citar as em que exaltou o nacionalismo lusitano. De qualquer forma,
tomemos ao menos dois exemplos. Ao relatar o clima reinante no seio
da hoste castelhana nos momentos precedentes à batalha de Aljubarrota,
Lopes conta que “dous bispos que hi vijnham e alguuns frades pregadores
outorgauom imdulgencias da parte do Antypapa...” Antipapa! Precisaríamos
exemplo mais significativo? Quanto ao sentimento nacional tomemos, para
ilustrá-lo, as páginas onde Lopes retrata as tribulações
sofridas por Lisboa em virtude da falta de mantimentos. Embora tristes
e comoventes, do ponto de vista literário, estas páginas
podem se inscrever entre as mais belas escritas por Lopes. Nelas são
retratados os sofrimentos do povo que se abrigava em Lisboa durante
o cerco promovido pelo rei castelhano:
“Assi que rrogavom a morte que os levasse, dizemdo que melhor
lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia rrenovados desvairados padeçimentos.”
Todavia, todo esse sofrimento dos lisboetas não foi em vão:
“Hora esguardaae como sse fossees presente, ha tall çidade
assi descomfortada e sem nenh a çerta feuza de seu livramento,
como veviriam em desvairados cuidados, quem sofria omdas de taaes afflições?
Oo geeraçom que depois veo, poboo bem avetuirado, que nom soube
parte de tantos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos! os
quaaes a Deos por Sua merçee prougue de çedo abreviar
doutra guissa, como açerca ouvirees.”
Além das duas fontes narrativas apreciadas acima, devemos ter
em conta que Lopes utilizou-se também, para a sua Crônica
de D. João I, de coleções de sermões e de
obras poéticas patrióticas. Na verdade, quanto a essas
obras poéticas, nada é excessivamente taxativo e, se deveras
procedente, tornaria invencionices fantasistas quaisquer conjecturas
a seu respeito. Russell, baseado na exorbitância de alguns dados
oferecidos por Lopes, como o efetivo do exército castelhano e
o número de mortes ocorridas na Batalha de Aljubarrota, concluiu
que “é sedutora a idéia de que esses relatos seriam
obras poéticas escritas no calor do entusiasmo patriótico
depois da grande vitória”. Quanto às coleções
de sermões, podemos dizer que as evidências sobre a sua
utilização são muito maiores do que as relativas
aos poemas patrióticos. Este tipo de literatura medieval, tão
ao gosto do leitor da época, a exemplo da Crônica do Doutor
Christoforus, influenciou a obra de Lopes no que concerne à posição
da Igreja portuguesa diante da crise sucessória. O mestre Rodrigo
de Simtra, da ordem de São Francisco, notável pregador,
segundo Lopes, levou às lágrimas os exultantes portugueses
que comemoravam com procissão e missa a retirada dos castelhanos
que, sob o comando do próprio rei, haviam cercado Lisboa em 1384.
“E nos assi postos na postumeira parte de tamanha lastima e amgostura,
disse o mui alto Rei çellestriall, Padre de gramdes misericordias
e Deos de toda comssollaçom, no comssistorio da sua sabedoria:
Tempo he que ajamos compaixom com a çidade de Lixboa! ouvida
he a tua oraçom! e porque te amei querote livrar, avemdo de ti
gramde doo e esto sera em maão forte, e a tua feuza daqui em
deamte, em mim será.
Mas por quamto aquell gram Rei de Castella era emdurado em seu coraçom,
a nom deçercar esta çidade por cousa que aviinr podesse,
ataa que per fame ou força darmas a podesse tomar, nom quis Deos
com ell teer outro geito, por mostrar seu grade poderio, salvo aquelle
que teve com elRei Faraó...”
Outro longo, belo e não menos comovente sermão utilizado
por Lopes foi o proferido por frei Pedro, da ordem de São Francisco,
por ocasião do recebimento das bandeiras tomadas aos castelhanos
na Batalha de Aljubarrota, pelos moradores de Lisboa. Tomemos um trecho
curto, mais ou menos ao acaso, para exemplificarmos:
“E por em eu posso dizer a uos outros: Oo cidade de Lixboa e reyno
de Portugall, que graças e louuores podyas dar ao teu Deus por
taaes marauylhas e beneficios como este, que por muytos que fossem e
em ellas multiplicasses, nom parecesses sseer jngrato? Certamente nom
somos abastantes pera ello, por a multidom dos nossos pecados. Pois
quem lhas dara por nos, se o humaanaes louuores disto nom ssom abastantes.
Dem-lha os sseus ssantos; louuem-no os sseus angeos, e sseiam da hordem
do poderyos, a que jsto maaes pertee(n)ce, dizendo em nome de uos todos:
Oo Christo Jhesus, ymagem de Deus Padre, poderoso em virtudes e forte
em-nas batalhas, muytas graças e louuores te damos que por a
tua jnfijnda piedade quisseste oolhaar por os portugueeses o dya do
seu gram trabalho, por lhe dar honra de vencimento contra a ssanha de
seus cruees emmiijgos!”
Para terminarmos a nossa exposição sobre as fontes usadas
por Lopes na elaboração da Crônica de D. João
I, registremos que utilizou, além dos livros de chancelaria e
documentos diplomáticos, também bulas papais, capítulos
das cortes, cartas particulares e, de forma inédita, procedeu
ao exame de epitáfios para comprovar os falecimentos em Aljubarrota.
Como já tivemos oportunidade de discorrer sobre os livros de
chancelaria e os documentos diplomáticos, esclareceremos agora
apenas o que eram as outras fontes anunciadas no parágrafo supra.
As bulas, decretos pontifícios, eram muito comuns durante a Idade
Média, pois os papas possuíam, até mesmo sobre
os soberanos, uma certa autoridade, ao menos espiritual, apesar do Cisma.
O uso mais comum das bulas, no que toca à realeza, dizia respeito
à dispensa para o casamento entre parentes. A abundância
desse tipo de instrumento deve-se a dois fatores usados com muita freqüência
nessa época: os casamentos de parentes, até de primeiro
grau, entre os familiares da realeza, por um lado, e o costume de considerar-se
parente até mesmo aquelas pessoas ligadas pelo compadrio, de
outro. E, justamente, o mais célebre exemplo que possuímos
de bula papal na Crônica de D. João I, refere-se à
dispensa deste rei para contrair matrimônio. Só que nesse
caso a dispensa não dizia respeito a parentesco, mas por ser
D. João, Mestre de Avis.
O caso foi polêmico por envolver um rei ainda não plenamente
reconhecido, nem sequer pelos próprios habitantes de seu reino.
Ocorreu que tão logo D. João I foi eleito rei de Portugal,
foi feita uma suplicação ao papa Urbano VI, que o dispensasse
para contrair matrimônio visto que, como mestre da ordem de Avis,
havia feito voto de castidade. Os embaixadores portugueses tiveram muita
dificuldade para conseguir a bula, pois, segundo Lopes, um inglês
que estava na corte papal informou ao pontífice que o reino português
pertencia a Dona Constança e, por conseqüência, ao
Duque de Lancaster, seu marido. Ora, como a Inglaterra foi um dos sustentáculos
do poder pontifício romano, era natural que o papa desejasse
primeiro ver resolvida a disputa pelo trono português para depois
expedir a sua Bula. O Duque, que veio a ser sogro de D. João
I, tentando ajudar na resolução dessa questão,
enviou uma carta ao papa esclarecendo que não estava de forma
alguma disputando o trono mas, nesse ínterim, morreu Urbano VI
e somente no pontificado seguinte, Bonifácio XIX assinou duas
Bulas que, em resumo, davam a dispensa ao rei por estas palavras:
“...te absoluemos e liuramos de toda obrigaçom e legamento
de uoto dobediençia, castidade e pobreza, e profissam e obseruamça
regullar, em que aa dita hordem per quallquer modo theudo e obrigado
fosses, posto que de guardar todos ou cada huum delles juramento fezesses:
e jsso mesmo de toodo perjuizo e magoa dinfamya e jnhabilidade que por
as ditas razoões ou outras alguumas teuesses.
E mais te legitimamos e restituimos a llegitimo naçimento e te
habilitamos, despemsamdo contigo que, nom embargando as ditas cousas
e o ffallymento de tua naçemça, semdo geerado do dito
Rey dom Pedro e dhuma molher que per matrimonio nom era a el comjunta,
posto que esse teu padre e madre cada huum fosse casado no tempo do
comçebimento e naçemça.”
Essas bulas não devem ter sido publicadas por Lopes, na sua íntegra,
unicamente por dispensarem o rei de seus votos. Na realidade, elas tiveram
um significado muito maior, o reconhecimento pelo poder espiritual da
legitimidade de D. João para reinar em Portugal e, conseqüentemente,
o reconhecimento da própria independência portuguesa.
Outra fonte utilizada por Lopes foram os Capítulos das Cortes.
Ele já se utilizara de artigos das Cortes de Elvas de 1361, para
elaborar a Crônica de D. Pedro quando discriminou farto material
que dizia respeito à grande tensão social em que estava
mergulhado o reino, proveniente das disputas entre os partidários
do falecido rei D. Afonso IV e de seu filho D. Pedro. Embora, com certeza,
tenham sido abordadas muitas destas questões em Elvas, Lopes
diz que delas “...não fazemos mais longo processo por não
sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem...”. Todavia, é
na Crônica de D. João que temos o mais significativo exemplo
do uso de artigos de Cortes por Fernão Lopes, pois, ao narrar
a eleição do Mestre de Avis para rei de Portugal, baseia-se
nos artigos da Corte de Coimbra, realizada em 1385. Nesta assembléia,
“hum notavell barom, homem de perfeita autoridade, e comprido
de sçiemçia, mui gramde leterado em lex, chamado doutor
Joham das Regas, cuja sotilldade de clareza de bem fallar antre os leterados,
oje em dia he theuda em conta”,
defendeu a eleição do Mestre de Avis. Este João
das Regras, formado em Bolonha, escola pioneira na formação
de legistas que buscavam no Direito Romano a fonte abalizada para a
defesa do absolutismo real, não lhe desmereceu o prestígio
nem as características. O seu papel nas Cortes poderia ser comparado
ao de Nuno Álvares Pereira no campo de luta, pois se o último
resguardou-lhe o reino com a sua espada invencível, João
das Regras sustentou seus direitos à Coroa ? tão cobiçada
por outros herdeiros ? garantindo-lhe a eleição. De fato,
João das Regras, com muita habilidade, conseguiu demonstrar que
D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro, não eram legítimos
porque este rei nunca fora casado com Dona Inês de Castro. Além
do mais ambos haviam tomado armas contra Portugal, quando reinava D.
Fernando. Dona Beatriz, filha de D. Fernando, rainha de Castela, em
virtude de seu casamento, também não era legítima
porque sua mãe, Dona Leonor, apesar de ser considerada Rainha
de Portugal, não poderia jamais ter se casado legalmente com
D. Fernando uma vez que já era casada com João Lourenço
da Cunha. Quanto ao rei castelhano, D. João, era descartado não
porque João das Regras lhe negasse o parentesco ? primo co-irmão
de D. Fernando ? mas porque esses laços eram muito frágeis.
E o fato de ser casado com Dona Beatriz também não lhe
autorizava a entrar na disputa do trono português uma vez que,
como já havia demonstrado, D. Beatriz não era filha legítima.
Mais correto, portanto, pelos argumentos de João das Regras,
era eleger o Mestre de Avis, filho de D. Pedro, que, embora bastardo,
reunia as qualidades próprias de um rei: linhagem real, grande
coração, amor aos súditos, bondade, devoção
e ordenador discreto das coisas necessárias para a defesa do
reino.
Por que omitiu Lopes grande parte das decisões das Cortes de
Elvas, dedicou tão reduzido espaço às medidas administrativas
de D. João I, em virtude de resoluções de Cortes,
conforme se viu na nota de rodapé acima referenciada e, por outro
lado, discorreu tão largamente sobre as Cortes de Coimbra, que
elegeram o Mestre, rei de Portugal?
Tudo indica que não houve da parte do cronista nenhuma intenção
de esconder a verdade. Como citamos acima, Lopes sabia mais ou menos
que não interessava muito aos leitores de crônicas, o conhecimento
de medidas administrativas tomadas pelas Cortes. Descreve-as somente
porque “alguuns queram saber que cousas pediram os poboos em ellas
a huum senhor que nouamente emlegiam por el-rey”. Interessava
muito mais ao leitor medieval o drama histórico:
“Ora, drama, houve-o nas cortes de Coimbra de 1385, que Fernão
Lopes largamente contou, pois aí se lutou tenaz e inteligentemente
por aclamar rei o mestre de Aviz; não o houve nas cortes de Elvas,
onde o rei simplesmente ouviu muitas e despachou certas das reclamações
dos estados, consoante o direito e costumes do tempo.”
Outra fonte importante, largamente utilizada por Lopes, foram as cartas.
Essas eram abundantes na Idade Média, pelo fato de não
se contar naquele período com meios de comunicação
mais eficientes e rápidos do que elas. As cartas eram utilizadas
para os mais diversos tipos de mensagens: prestavam-se tanto para a
simples transmissão de notícias familiares, como serviam
para as convocações militares, transações
comerciais ou complicados negócios de Estado. Às vezes
eram revestidas de absoluto sigilo, outras eram lidas em público
para que a população tomasse conhecimento de seu teor.
Russell, comparando uma carta escrita por Gonçalo Domingues,
cônego de Lisboa, ao Abade de Alcobaça, Frei João
de Ornelas, com o contido no capítulo IV, da segunda parte da
Crônica de D. João I, não teve dúvidas em
concluir que a correspondência privada era uma das fontes utilizadas
por Lopes, embora, em virtude do desaparecimento da maioria desse tipo
de documento, não poder precisar que peso tiveram no conjunto
da obra de Lopes.
De qualquer forma, a menção ao uso de cartas, inclusive
a transcrição de algumas delas, é uma constante
nas crônicas de Lopes. Tomemos alguns exemplos paradigmáticos
para demonstrarmos a importância desse tipo de documentação
usada por Lopes, não nos restringindo apenas à Crônica
de D. João I, conforme sugere o subtítulo, mas mencionando
também alguns contidos nas Crônicas de D. Pedro e D. Fernando,
para que não fique a idéia de que nestas últimas
não tenham sido usadas cartas. Vejamos, inicialmente, um exemplo
relacionado com os negócios de Estado: mal havia morrido D. Fernando,
o rei de Castela já tomava a iniciativa de enviar cartas à
sua sogra, a rainha Dona Leonor, e à nobreza portuguesa, expressando
as suas intenções relativas à sucessão ao
trono, então vago. Afonso Lopes Texeda, designado embaixador
pelo rei castelhano para tratar deste assunto,
“...chegou a Lixboa e deu suas cartas aa rrainha e aaquelles que
viinham: nas quaaes era contheudo que bem sabiam como a rrainha dona
Beatriz sua molher, filha d'el-rrei dom Fernando, era herdeira do rregno
de Portugall, pois seu padre era finado sem leixando outro legitimo
filho que de dereito ouvesse d'erdar...”
Um outro exemplo é o representado por cartas que se prestavam
para as tão freqüentes convocações militares
que se faziam na Península Ibérica. Em junho de 1398,
o Conde Nuno Álvares Pereira decidiu invadir Castela e, para
tanto,
“...escreueo ao Meestre de Santiago, dom Mem Rodrjgues de Vasconcellos,
e a dom Lourenço Esteueenz de Goyos, tente da hordem do Esprital
que depois foy Priol, e jsso mesmo ao Almyrante e a todos os capitaes
dantre Tejo e Odiana e do reino do Algarue e da Estremadura, como por
seruyço del'Rey entemdya demtrar em Castella, nam dizemdo porem
donde nem contra qual parte; e que lhe rogaua que vyessem pera elle
com sua gentes pera serem seus companheiros na obra que hordenada tinha
de fazer.”
Além desses, supracitados, temos também exemplos de cartas
através das quais se concediam privilégios à nobreza
e a algumas localidades. A mais significativa dessas “cartas de
doação”, em nosso entendimento, é a que D.
João I deu à Lisboa: após um longo preâmbulo
usual, o rei atesta que:
“De nossa própria liberdade e liure vomtade e de nosso
poder absoluto lhe DAMOS e outorgamos e aprouamos (e) comfirmamos todollos
priuillegios, liberdades, boons hussos, foros e costumes que ata aquy
ouueram per os reis que amte nos forom e de que vssarom sem seu contradizimento:
Outrosy lhes outorgamos e damos as graças e mercees, doaçoões
e liberdades e priuillegios em os capitollos jusso scpritos conthedos,
per elles pedidos (...) E prometemos e juramos de as guardar e manter
e de nunca hir contra ellas em parte nem em todo (...); e em testemunho
desto lhe mandamos dar esta nossa carta...”
Por fim queremos enfatizar a existência de casos em que, até
mesmo para desafiar os adversários, os encarregados de transmitir
as mensagens levavam consigo documentos escritos que serviram, evidentemente,
para que Lopes reconstituísse alguns diálogos. É
o caso do desafio de Nuno Álvares Pereira ao Mestre de Santiago.
Segundo o cronista, esse mestre da cavalaria castelhana, após
ouvir o desafio feito verbalmente por um escudeiro do Condestável,
recebeu dele uma carta, como fica evidenciado pelos seus dizeres: “Escudeiro,
segundo vos dizees e por este escrito parece, o Comde ha gramde queixume
de mym...”. E, quando o escudeiro voltou com a resposta, pôde-se
constatar que ela também se tratava de mensagem escrita: “o
Comde ouuyo tudo e visto o escrito que trazia, chamou o seu conselho...”.
Ficamos por aqui nos nossos comentários a respeito das fontes
escritas, utilizadas por Lopes. Vejamos agora dois outros recursos utilizados
por ele na elaboração de suas crônicas. O uso dos
topoi, aparentes achados literários usados por nosso cronista
e que representam o recurso a um repertório com raízes
recuadas e com foros de autoridade expressa na fórmula e o resultado
de suas observações pessoais, tanto quanto saibamos inéditas
para um cronista medieval, ao menos no que toca aos túmulos,
epitáfios e moedas por ele examinadas.
O
USO DOS TOPOI NA OBRA DE LOPES
O
uso dos topoi nas crônicas de Lopes é tão variado
e freqüente que comportaria um capítulo à parte ao
invés deste rápido parêntesis que estamos a fazer
e que, por sua própria natureza, será reduzido a apenas
alguns exemplos mais significativos. Na verdade, mostraremos três
ou quatro casos perfeitamente enquadráveis na classificação
elaborada por Ernest Robert Curtius sobre o assunto.
Já no início do prólogo da Crônica de D.
Pedro I, aquilo que, numa leitura menos atenta, levar-nos-ia a imaginar
que fosse uma confissão de modéstia do cronista, não
passa de um topos:
“...é nossa intenção, neste prólogo
falar, não como buscador de novas razões, por própria
invenção achadas, mas como ajuntador, num breve molho,
dos ditos de alguns que nos prouveram.”
E logo adiante, ao encerrar o capítulo em que trata “dalgumas
coisas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justiça e prol
de seu povo”, usa novamente outro topos. Depois de enumerar uma
série de atitudes do monarca em prol de seu povo, afirma que
sobre elas: “não fazemos mais longo processo por não
sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem”. Exemplos dessa
natureza, encontrados com relativa facilidade nas crônicas de
Lopes, constituem-se nos chamados topoi de modéstia: através
deles o autor procura mostrar-se humilde diante do seu leitor, referindo-se
às suas deficiências e à sua falta de preparo.
Outro topos utilizado com muita freqüência por Lopes é
do tipo que Curtius denomina de Tópica Exordial, ou seja, a promessa,
logo no início de um determinado capítulo, de seguir caminhos
ainda não trilhados, de refutar antigas lendas e coisas desse
gênero. Tomemos ao menos uma dessas projeções de
intenção de Lopes, encontrada no prólogo da Crônica
de D. João I:
“Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade
de pallavras, e nom a çertidom das estorias, desprazer lhe ha
de nosso rrazoada, muito ligeiro a elles douvir, e nom sem gram trabalho
a nos de hordenar.”
Também usado constantemente nas crônicas de Lopes, é
o topos que leva ao elogio do soberano. Curtius resgata o seu uso desde
a pax augusta, e estabelece as nuanças de sua trajetória
até Chrétien de Troyes. Lopes utilizou-o, adaptando-o
às expectativas de sua época, sempre quando teve a necessidade
de passar ao leitor a imagem do soberano que a partir de determinado
momento assumira o trono. De D. Pedro I diz que :
“...usou da justiça, de que a Deus mais apraz que cousa
boa que o rei possa fazer... era gago... grande caçador e monteiro...
era muito viandeiro, sem ser muito comedor mais que outro homem... foi
grande criador de fidalgos... acrescentou muito nas contias dos fidalgos...
era em dar muito ledo... dizendo que o dia que o rei não dava,
não devia ser havido por rei... era ainda de bom desembargo...
era galardoador dos serviços que lhe fizessem.. e nunca tolheu
a nenhum cousa que lhe seu pai desse, mas matinha-a e acrescentava nela.”
D. Fernando era
“...mancebo vallente, ledo e namorado, amador de molheres... havia
bem composto corpo e rrazoada altura, fremoso em parecer e muito vistoso,
tall que estando acerca de muitos homees, posto que conhecido nom fosse.
logo o julgariam por rei dos outros. Foi gram criador de fidallgos...
era cavalgante e torneador, grande justador e lançador de tavollado;
era muito braceiro... cortava muito com huua espada e rremessava bem
a cavalo... amava justiça... muito liberall... grande agasalhador
dos estrangeiros... fez muitas doações de terras aos fidallgos
de seu rreino, tantas e muitas mais que nenhuu rrei que ant'elle fosse...
amou muito seu poboo.”
Esses eram soberanos distantes e de outra dinastia. Ao abordar o fundador
da casa reinante que em seus dias ocupava o trono e antes da exaltação
de praxe a D. João I, Lopes utiliza-se daquilo que Curtius classifica
como “os topoi do inexprimível”, ou seja, a acentuação,
da parte do autor, de sua incapacidade de dominar o assunto. Não
suficiente, na seqüência deste topos, começa logo
o outro, de exaltação:
“Este grande e muy honrrado senhor, mais excellente dos reys que
em Portugal reynaram, foy sempre fiel cathollico... muy deuoto da preçiossa
Virgem... sua conuersaçam era de bramdos e homrosos costumes...
non era sanhudo nem cruel, mas manso e benignamente castigaua... amballas
virtudes que no rey deue dauer, saber, justiça e piedade, eram
em el compridamente... seemdo graçiosso companheiro açerca
dos senhores e fidalgos e benigno trautador do comuum poboo... homrou
muyto e amou sua molher dhonesto e saão amor... esplamdeçeo
em el a virtude da grandeza... todos reçebiam delle gramdes e
assinadas merçees...”
Um tanto curiosamente, a rainha Dona Leonor Teles também foi
exaltada por Fernão Lopes, mas deixaremos de anotar aqui os predicados
a ela atribuídos por fazermos menção a eles, mais
demoradamente, no capítulo sobre “As mulheres”. De
qualquer forma, o que esperamos, é ter evidenciado que Lopes
usou como muita freqüência os topoi, dos quais, até
aqui, apenas tomamos alguns exemplos, não desconhecendo a existência
de muitos outros, inclusive o chamado topos eclesiástico, que
abordaremos no segundo capítulo deste trabalho.
INOVAÇÃO DOCUMENTAL
Lopes,
na sua incessante tentativa de buscar a verdade, para relatar aos seus
leitores, não se contentou apenas com o uso de documentos escritos.
Inovou. Foi a Alcobaça, onde foram enterrados os corpos de Inês
de Castro e de D. Pedro I, constatando que este rei, em vida,
“...mandou fazer um monumento de alva pedra, todo mui sotilmente
obrado, pondo enlevada sobre a campa de cima a imageem dela com coroa
na cabeça, como se fora rainha. E este monumento mandou pôr
no Mosteiro de Alcobaça, não à entrada onde jazem
os reis, mas dentro da igreja à mão direita, cerca da
capela-mor.
Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal monumento e tão
bem obrado para si, e fê-lo pôr acerca do seu dela, para
quando se acaecesse de morrer o deitarem nele.”
Fruto também de sua observação é a descrição
das moedas que D. Pedro I mandou cunhar. Por certo Lopes dispôs
dessas moedas, manuseou-as, comparou-as com as de seu tempo para poder
retratá-las tão eficazmente. Vejamos como descreve uma
pequena moeda chamada dobras, das quais eram necessárias cem
para fazer-se um marco. Essas dobras,
“...de uma parte tinham quinas e da outra figura de homem com
barbas nas faces e coroa na cabeça, assentado numa cadeira com
uma espada na mão direita: e havia letras ao redor por latim
que em linguagem diziam: ‘Pedro rei de Portugal e do Algarve’;
e da outra parte ‘Deus, ajuda-me e faz-me excelente vencedor sobre
meus inimigos’.”
Alguém, lendo esta descrição, pode deixar de fazer
uma idéia de como era essa moeda? Claro que a descrição
poderia ser muito mais detalhada: ele poderia, dirão os mais
exigentes, colocar a espessura, o diâmetro e até mesmo
o peso da moeda, parece-nos, todavia, que como a descreveu bastou para
que qualquer leitor tivesse uma idéia clara de como ela era.
Mas não estamos discutindo o mérito da descrição
e sim as fontes utilizadas por Lopes na elaboração de
suas crônicas. Para tanto, os dados que expusemos são mais
que esclarecedores: Lopes examinou com muito cuidado as moedas correntes.
Mais surpreendente ainda do que a apreciação dos túmulos
de Inês de Castro e de D. Pedro e do que o exame das moedas circulantes
àquela época, foi a diligência de Lopes na conferência
dos epitáfios daqueles que tombaram em Aljubarrota, para discriminar-lhes
os nomes. Ao que nos parece, Lopes recorreu a esse método em
virtude de contar com documentação contraditória,
especialmente no que se refere ao número de mortes ocorridas
nessa batalha. Árduo trabalho, merecedor de nosso respeito, sobretudo
pelo que revela de intuição já “moderna”
de metodologia de pesquisa histórica.
De fato, conforme pudemos ver, se na Crônica de D. Pedro Lopes
deixou a desejar no que diz respeito à documentação
utilizada, porque dispôs de poucas fontes, e se na de D. Fernando
já pode contar com material considerável, na de D. João
I, viu-se envolvido com tantos documentos e às vezes tão
contraditórios, que precisou recorrer à pesquisa in loco,
como mencionamos acima. Mas o uso tão intenso e criterioso de
fontes faz com que levantemos uma outra questão, aliás
já discutida por muitos autores: teria Lopes sido apenas um cronista
ou já um historiador? Ou seja, o primeiro historiador português...
LOPES,
UM HISTORIADOR?
Quer
nos parecer que ao longo dos anos, isto é, na medida em que escrevia,
Lopes aprimorava cada vez mais tanto o seu estilo quanto o seu método
de pesquisa. Esse aperfeiçoamento do cronista, o uso criterioso
das fontes, o empenho quase obsessivo na busca da verdade, a ordenação
coerente dos acontecimentos, em suma, a utilização de
uma metodologia de trabalho, foram, por certo, os motivos que levaram
alguns historiógrafos a considerá-lo o primeiro historiador
português.
De nossa parte, considerar Lopes um historiador não nos parece
nenhum absurdo desde que se tenha sempre em mente a época em
que viveu e os hábitos dos escritores daquele tempo. E vamos
além, cremos que Lopes conseguiu, no final do século XV,
realizar mais ou menos, aquilo que, por exemplo, um Jayme Cortesão,
após quarenta anos de persistentes trabalhos de investigação,
concluiu ser a atitude mais correta entre os historiadores: “que
emitissem um juízo equilibrado entre a criação
coletiva e das personalidades representativas”, e, se dissemos
“mais ou menos” é porque, evidentemente, no conjunto
de sua obra, o equilíbrio não é perfeito e nem
poderia sê-lo, considerando-se os padrões então
vigentes. Embora tenha procurado retratar a alma do povo, alongou-se
mais em descrever a participação da nobreza no conjunto
dos acontecimentos. De qualquer forma, “o seu critério
de seleção e de crítica aproxima-o, surpreendentemente,
da historiografia do século XIX”.
Considerá-lo, entretanto, simplesmente o primeiro historiador
português, como fez, por exemplo Braamcamp Freire, é um
postulado que, se não é incorreto, ao menos deve ser bem
matizado. A história da humanidade tem nos mostrado que ninguém,
em qualquer ramo científico, pode criar alguma coisa inteiramente
inédita, sem nenhum precursor e Lopes não se constituiu
em exceção. Ao que parece, o interesse pela história,
em Portugal, manifestou-se muito cedo. Já na época de
D. Dinis, pode-se perceber que foi muito estimulada. Quer dizer, pode-se
argüir que houve em Portugal uma verdadeira escola de escritores
que, ao longo dos séculos, foi se aperfeiçoando, até
encontrar em Lopes o artífice mais brilhante. Isso porque “...
em Lopes há alguma coisa mais do que o génio com que uma
escola se distinguiu. Se não foi o primeiro cronista português,
foi sem dúvida, o primeiro dos historiadores modernos”.
Como vemos, esta afirmação de Russell não somente
endossa a de Braamcamp Freire, de que Lopes foi o primeiro historiador
português, como também a amplia. Todavia, cremos ter deixado
claro que foi o primeiro historiador português no sentido de que
foi o ponto culminante, que coroou, aliás com muito sucesso,
todo o trabalho que vinha se desenvolvendo até então em
Portugal por uma verdadeira escola, na qual destacam-se o desconhecido
autor da Crônica do Condestável e Christoforus, que Lopes
parece ter elegido como o melhor de seus antecessores. Esta mesma opinião
é partilhada por Salvador Dias Arnaut por entender que “numa
época em que existiu um Doutor Cristóvão e um Martim
Afonso de Melo e se pressentem tantos anónimos escritores, não
pareceu necessário admitir que só Fernão Lopes
pudesse ter escrito uma obra que aliás em nada aumenta a sua
glória”.
Estamos inclinados a inferir que Lopes pode ser considerado um historiador,
apesar das restrições colocadas. Entretanto, vamos acrescentar
mais algumas ressalvas que lhe são feitas por Williams Entwistle,
não por concordarmos que sejam significativas a ponto de alterar
o nosso ponto de vista, mas justamente porque nos ensejam a oportunidade
de contrapormo-nos à idéia a elas subjacentes de que ele
não seria um historiador e nem sequer um homem erudito. Tais
ressalvas dizem respeito especialmente a constatação de
que Lopes não teria usado adequadamente os documentos e teria
uma acentuada tendência de fazer “plurais de singulares”.
Assim, é que os “gramdes vollumes de livros de desvairadas
limguagees e terras...” que diz ter lido, não passariam
de obras portuguesas, latinas e castelhanas que circulariam na época
em Portugal. Lopes não teria lido sequer Froissart ou Pere del
Punyalet que escreveram, segundo Entwistle, obras relevantes para o
seu tempo. Quanto aos outros “plurais de singulares”, explica-nos
o próprio Entwistle que Lopes, ao usar “uns” ou “alguns”,
estaria apenas referindo-se a Ayala e seus leitores e não a outros
cronistas. No que toca aos documentos, Entwistle entende que apesar
de tê-los usado, Lopes não chegou a torná-los a
base de seu trabalho, bem como censura o fato de não ter estudado
o campo de batalha de Aljubarrota nem ter verificado os sítios
de Trancoso ou Valverde, ao menos para a mesma conferência que
fizera em Alcobaça, para discriminar os mortos de Aljubarrota.
Ora, no que diz respeito a esta última afirmação,
quer nos parecer que Entwistle extrapolou em muito o nível de
exigência, pois o uso de fontes documentais como base de um trabalho
é uma exigência que se deve fazer a um historiador atual,
não a um cronista-historiador. Por outro lado, não compreendemos
como Froissart ou Punyalet deveriam ser leituras indispensáveis
a Lopes. Acreditamos ser mais interessante apreciar Lopes pelo que fez
do que pelo que poderia ter feito. Ademais, tomando por base as crônicas
de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, podemos afirmar que Lopes
era um homem culto. Segundo Rodrigues Lapa, conhecia Aristóteles,
Túlio, Ovídio e Petrarca. Antonio Borges Coelho acrescenta-lhe
o conhecimento de Cícero, Sêneca, Beda, Eusébio,
Santo Agostinho e repete Aristóteles, também mencionado
por Lapa. Vários destes autores aparecem citados literalmente
ao longo das crônicas escritas por Lopes - Santo Agostinho, do
qual menciona a Cidade de Deus, Aristóteles, a quem chama de
“claro lume de filosofia”, Túlio, que é o
mesmo Cícero, citado por Borges Coelho [Marco Túlio Cícero]
e Beda - os demais foram identificados através das idéias
dos autores mencionados ou por passagens citadas. Com certeza Lopes
conheceu também as aventuras do Graal, chegando mesmo a comparar
cavaleiros portugueses com os heróis lendários. Como cronista,
não deve ter deixado de ler, quantos pode, os trabalhos de seus
colegas de profissão, destacadamente o espanhol Ayala e o português
Christoforus, dos quais, inclusive, copiou bons trechos, como já
temos visto. E, finalmente, como cristão, que indubitavelmente
era, Lopes devia conhecer ao menos algumas das muitas vidas de santos
que circulavam na época e, com certeza, conhecia muito bem a
Bíblia, usando-a com freqüência, inclusive para fazer
comparações. Em conclusão, podemos afirmar, não
sem boa dose de ironia, que Lopes, a tal ponto pode ser considerado
um historiador, que mereceria mesmo ser criticado, do ponto de vista
da historiografia contemporânea, por enaltecer os vencedores.
Afinal, Antonio Saraiva não está totalmente desprovido
de razão ao afirmar que:
“aquilo que conhecemos da obra de Fernão Lopes não
é com efeito mais do que a história e justificação
da revolução portuguesa do final do século XIV
segundo o ponto de vista dos seus vencedores.”
3. FERNÃO LOPES E OS OUTROS CRONISTAS DO PERÍODO
Quer
nos parecer, portanto, que não seria a leitura de mais um ou
dois cronistas, seus contemporâneos ou não, que alteraria
a competência de Lopes na abordagem de determinados assuntos.
Sabemos que os cronistas tinham estilo e perspectivas diferentes acerca
de uma mesma questão, o que não desqualifica Lopes em
relação a Froissart. Lopes tinha o seu estilo próprio,
original, insuperável. Froissart, que viveu entre 1337 a 1410,
legou, sem dúvida uma bela obra, no entanto, é grande
a diferença que os separa.
“Ao passo que um segue o seu mito cavalheiresco com ausência
total de espírito crítico e passa ao papel as vagas recordações
dos veteranos das campanhas peninsulares, o outro labuta através
de documentos apodrecidos, examina meticulosamente o campo de Aljubarrota,
decifra penosamente os epitáfios desvanecidos dos túmulos
de Alcobaça. Embora quási contemporâneos, um pertence
ao crepúsculo da Idade-Média; o outro parece já
anunciar a chegada dos sábios e humanistas do Renascimento.”
A única possibilidade de influência que poderia existir,
caso Lopes conhecesse a obra de Froissart, seria a de que, copiando-o
largamente, o seu estilo poderia sofrer alguma alteração.
Esta dedução a fazemos porque, ao menos, foi assim quando
Lopes copiou Ayala e Christoforus. Se tomarmos, por exemplo, a Crônica
de D. Pedro e compararmos as partes que foram copiadas de Ayala com
as narrativas bélicas das Crônicas de D. Fernando e D.
João I, denotaremos um estilo mais seco, em virtude da influência
sofrida. Se nos valermos da Crônica de D. João I, verificaremos
que, quando copia Christoforus, principalmente no que tange às
atividades militares, o seu estilo mostra-se mais técnico. Isto
não quer dizer que ao copiar alguns autores, Lopes tenha incorporado
totalmente os seus diferentes estilos e muito menos as suas concepções,
o que, se assim fosse, não teria redundado apenas em perda e
ele teria obtido, por certo, uma perspicácia maior, que lhe permitiria
analisar com mais profundidade os acontecimentos políticos e
militares.
Mas como já afirmamos, Lopes tem o seu estilo próprio
e que se manifesta especialmente original, inigualável, ao introduzir
o povo em sua obra. Mais que em qualquer outro aspecto, quer seja de
ordem militar, religiosa, política ou comercial, que se possa
imaginar, é neste ponto, ao falar do povo e fazer o povo falar,
que Lopes se encontra, projeta-se, supera-se como cronista para transformar-se
no primeiro grande historiador português. E, ao contrário
dos cronistas franceses e flamengos, que não compreenderam os
movimentos sociais que narraram, confundindo-os com arruaças
de malfeitores, “a grande superioridade de Fernão Lopes
como historiador é esta: o ter compreendido os acontecimentos,
porque se identificou com a força transformadora”.
É claro que não lhe faltaram críticos detratores,
alguns, por sinal, muito severos. Moraes Sarmento, por exemplo, numa
obra de seiscentas páginas intitulada D. Pedro I e sua época,
foi um dos que procurou passar uma imagem negativa de Lopes, tentando
demonstrar que o cronista procurou infamar a memória de D. Pedro,
influenciado pelo clero que não tinha aquele rei em boa conta,
especialmente pela sua tumultuada vida conjugal. Moraes Sarmento, entretanto,
encontrou um defensor de Lopes que respondeu à altura a todas
as suas críticas, pois Gonçalves Cerejeira, usando apenas
um décimo das páginas utilizadas por Sarmento, sessenta
ao todo, conseguiu, embora ressaltando que nem tudo o que se encontra
na crônica de D. Pedro seja a pura expressão da verdade
histórica, restituir a autoridade ao cronista, se é que
porventura Sarmento a tivesse abalado.
O Conde de Vila Franca também foi bastante duro com Lopes. Acusou-o
de esconder a verdade e chamou-o de “arteiro”. Todavia,
em seu trabalho, D. João I e a Aliança Inglesa, tivemos
a paciência de contar e constatamos nada mais nada menos que cento
e trinta e oito citações do cronista. Ora, esta obra de
Vila Franca tem trezentas e duas páginas, o que significa que
praticamente em cada duas páginas há uma referência
a Lopes. Ninguém perderia tanto tempo com um autor que não
merecesse respeito. E as referências a Lopes não se restringem
a Vila Franca, visto que
“... a importância dos seus depoimentos pode ser medida
pelo vasto número de citações da Crónica
que se pode encontrar em qualquer estudo sério de História
Medieval Portuguesa, tal a riqueza dos elementos que fornece, e a sinceridade
e fidelidade de que se reveste a narração dos acontecimentos.”
Sinceridade e fidelidade. Sincero, Lopes jamais atribuiu a si o que
não fez. Embora em seu tempo não fosse usual a citação
das fontes utilizadas Lopes sempre procurou, a seu modo, deixar claro
quando algo não era de sua autoria. Dizem uns, afirmam alguns,
são expressões muito utilizadas por ele, mas é
no prólogo da Crônica de D. Pedro I, onde define o que
entende por Justiça, que nos deixa bem à mostra o seu
espírito sincero:
“...é nossa intenção neste prólogo,
muuito curtamente falar, não como buscador de novas razões
achadas, mas como ajuntador, num breve molho, dos ditos de alguns que
nos prouveram.”
Fiel, Lopes, quando os utilizou, copiou quase literalmente os seus predecessores,
possibilitando aos pesquisadores a identificação de forma
relativamente fácil dos autores transcritos. E tamanha é
a sua fidelidade às fontes que “...é a Fernão
Lopes que temos de recorrer se quisermos descobrir o teor de alguns
dos mais importantes documentos das chancelarias desaparecidas”.
Mas não se resumem à fidelidade e à sinceridade
as virtudes de Lopes, elas são muitas. Tomemos mais uma, muito
importante para a prática do historiador e que se constituiu
numa das preocupações mais obstinadas de Lopes: a busca
da verdade. Qualquer historiador que se debruce sobre a obra de Lopes
constata inevitavelmente a disposição do cronista em escrever
a verdade. Para tanto, contrapõe opiniões e, com freqüência,
recrimina severamente aqueles que, na sua opinião, escreveram
coisas inverídicas. São comuns, ao longo de sua obra,
expressões do tipo: “leixadas todallas openioões
e ditos d'estoriadores que a esto contradizem” ou “mas tall
scpriuer foy bulra composta pera emganar os que nom sabem”, ou
ainda, “o cronjsta ha de seer muyto çerto em seu razoar”,
como também, “pois que o discpreto emtendimento deseia
saber a uerdade de todo” e “a uerdade, que errar nom pode”.
Todavia, a mais bela frase usada por Lopes para demonstrar o seu amor
à verdade está contida num desabafo que faz ao contestar
os que escreveram “erradas estoryas” a respeito de uma campanha
de Nuno Álvares:
“Porém tam maa e tam errada opnyom, defamador de sseus
boons e leaaes vasallos, com os geolhos em terra peça perdom
aa verdade...”
A expressão mostra toda a força da indignação
de Lopes e sugere um ato de profunda submissão, como se a verdade
fosse uma deusa e os difamadores pecadores. Por outro lado, obviamente,
sem levarmos em conta que Nuno Álvares foi o seu herói
preferido, Lopes demonstra todo o seu respeito à verdade. Não
é o caso de discutirmos aqui o que é a verdade, mas precisamos
deixar claro que o amor dedicado por Lopes à verdade era sincero,
todavia, à sua verdade. Como bem observou Entwistle: “Desejava
honestamente escrever a verdade: mas como bom patriota, acreditava que
era verdade aquilo que era mais favorável à sua pátria”.
4.
O VÍNCULO EMPREGATÍCIO DE LOPES
Além
desta questão, que deixamos em suspenso no fecho do item anteriormente
abordado, que faz parte do substrato de Lopes e que abordaremos mais
adiante, temos a considerar uma outra, que pode levar os homens a se
despojarem de seus princípios, o que eventualmente poderia ter
ocorrido com ele. Trata-se do seu vínculo empregatício
com a coroa.
Já tivemos a oportunidade de referir que Lopes era assalariado
régio e que inclusive, em 1434, D. Duarte destinara-lhe a importância
de catorze mil reais para realizar o seu trabalho. Este vínculo
levou Antonio Brásio a dizer que Lopes foi um “cronista
palaciano, oficial, a soldo do Estado e, portanto, de certo modo, comprometido.”
Uma definição concisa, clara e ponderada, amplamente aceita.
Ninguém poderá negar que Lopes tenha sido um cronista
palaciano, muito embora outros escritores do gênero tenham sido
mais assíduos freqüentadores das cortes. Muito menos podemos
negar um certo comprometimento de Lopes com o poder, justamente em virtude
de ser um cronista oficial, mas julgamos ter sido muito feliz a expressão
de Brásio de que comprometido Lopes o era “de certo modo”.
Com efeito, apesar de ter ocupado tantos e por muitos anos cargos oficiais,
Lopes não pode ser considerado um bajulador, pois ressaltar as
qualidades dos reis era inevitável para qualquer homem seu contemporâneo,
consciente da realidade medieva, fato que ele, ao que tudo indica, compreendia
bem. Por isto não deixou de tecer elogios às boas qualidades
dos reis, amas, por outro lado, não se furtou de censurá-los
quando, em seu entender, excediam às suas prerrogativas.
Realçar as qualidades dos reis bem que poderia ter sido a fórmula
encontrada por Lopes para a abertura de um largo caminho por onde pudessem
transitar livremente as suas opiniões, sem correr riscos de censura,
o que significaria, indubitavelmente, a perda de suas regalias. Pode-se
então inferir que Lopes viveu uma delicada situação,
pois de um lado era premido pelas circunstâncias e precisava enaltecer
as realizações dos soberanos, principalmente dos portugueses
e, de outro, havia de sua parte, um compromisso muito forte com a verdade,
o que o obrigava a ser imparcial. Oliveira Marques parece ter entendido
bem isto que representa ser contraditório em Lopes, assinalando
que
“...Fernão Lopes, porém, ainda um homem 'medieval',
combinou o inevitável louvor aos vencedores com um relato franco
dos acontecimentos e dos seres humanos, que o tornou espontaneamente
'moderno' e científico.”
De fato, a maior preocupação dos cronistas medievais eram
as atividades reais e os feitos cavaleirescos, destacando-se, dentre
eles, as realizações individuais dos fidalgos. Lopes,
um homem medieval, como temos frisado, não fugiu à regra,
todavia, foi muito além do comum: introduziu a arraia meuda,
os tripas ao sol, em suas narrativas. E a introdução do
coletivo é realmente espetacular. Mostra o povo participando,
envolvendo-se, extravasando a sua raiva ou rezando fervorosamente para
obter ou para agradecer uma graça, inclusive no caso das freqüentes
campanhas militares empreendidas pela nobreza.
O que quer dizer que Lopes não escreveu apenas sobre os reis
antigos, não fez somente a apologia da nobreza cavaleiresca,
foi o “cronista de uma causa nacional e patriótica que
triunfou”, portanto, em sua obra entram os mais diferentes segmentos
da sociedade medieval portuguesa, embora em proporções
diferentes, evidentemente. A forma como Lopes viu essa sociedade, em
resumo, é o que pretendemos ver a seguir.
5. LOPES E A SUA CONCEPÇÃO DA HISTÓRIA
Segundo
Lopes, para escrever a história, era necessário que se
escrevesse a verdade. Lopes, como temos visto, foi um grande devoto
da verdade. Ele nos deixou clara esta sua preocupação
com muita freqüência e nos mostrou o caminho, o método
que utilizou para chegar à verdade ao afirmar que:
“... o cronjsta ha de seer muyto çerto em seu razoar, e
por em antigamente nenhu m era ousado descpreuer estoria, saluo aquell
que visse as cousas ou delllas ouuve comprido conheçimento; porque
a estoria ha de seer luz da uerdade e testemunho dos antigos tempos.
E nos, posto que as nom vissemos, de muyto reuoluer de liuros com gram
trabalho e deligemçia ajuntamos as mais chegadas aa razom, e
em que os mais dos autores pella moor parte comsentem.”
Na maneira de entender de Lopes, para escrever a verdade, o historiador
deveria ter “comprido conheçimento” dos fatos, ou
seja, tê-los assistido, testemunhado ou ouvido diversos depoimentos
de participantes de uma cadeia de eventos. Lopes não possuía
a percepção de que cada um tinha, e tem ainda hoje, uma
maneira diferente de compreender o mundo e, conseqüentemente, os
acontecimentos, e que, a verdade, neste sentido, é limitada.
Por não vivenciar aquilo que escreveu, Lopes acabou inovando:
foi buscar a verdade nos documentos. Muito embora isto em si não
queira dizer que tudo o que escreveu fosse realmente verdadeiro, nos
demonstra a sua preocupação, a sua maneira de ver as coisas
e é isto que nos interessa por ora.
Mas Lopes tinha consciência de que somente a utilização
de documentos não era tudo de que necessitava para escrever a
história verdadeira. Ele procurou ser imparcial, ver os dois
lados da moeda, enfim, ter uma visão global da realidade a ser
descrita.
“E nós, porque dissemos deste rei Dom Pedro que era grado
e ledo em dar e não dissemos de algumas grandezas que dignas
sejam de tanto louvor, poderá ser que nos prasmarão alguns,
dizendo que não historiamos direitamente.”
Quer dizer, o historiador não deve relatar apenas os acontecimentos
que destaquem os defeitos ou as qualidades de uma personagem, mas oferecer
aos leitores uma visão geral destas duas faces. O historiador
nunca pode falar vagamente sobre os acontecimentos, especialmente se
isso o levar a desviar-se da verdade ou “moormente quando per
seu escrever fica maa fama d'alg uas pessoas”. Os padrões
de comportamento moral de Lopes não lhe permitiam, portanto,
utilizar-se da história para difamar as pessoas, fossem elas
amigas ou adversárias. E mais, os fatos deviam ser apurados com
rigor, desprezando-se todos aqueles que não houvessem sido tirados
de “autentica scriptura”.
Além disso, no dizer do próprio Lopes, a história,
para ser facilmente compreendida e lembrada, deve ser muito bem ordenada,
apesar de que às vezes os acontecimentos, ocorrendo concomitantemente,
obrigam o historiador a abandonar a cronologia rígida para dar
realce ao enredo. Num emaranhado em que
“... elRei de Castela vem pera emtrar em Portugal; Nuno Allvarez
outro ssi veemsse a Lixboa; desi o castello da çidade trabalhasse
o Meestre com ho poboo de o tomar ; alçamsse villas comtra os
alcaides dos castellos pello rregno; levamtãsse huniões
dhu s comtra os outros; ffazemsse outras muitas cousas em hu a sazom,
de guisa que h as torvam as outras, a sse nom poderem comtar nos dias
que acomteçerom.”
Lopes não teve dúvidas, optou pelo enredo, como supra
dissemos.
Mas é no prólogo de sua crônica de D. João
I, que Lopes nos oferece, com muita clareza, sua maneira de escrever
a história. Inicialmente, coloca uma questão que leva
aqueles que se propõem a narrar alguma coisa a se desviarem do
verdadeiro sentido da história, que é a verdade: a afeição
pela terra onde nasceu e se criou o escritor, e os vínculos deste
com o Senhor que lhe proporciona a subsistência para que escreva
sobre os seus feitos ou os de seus antepassados. Com referência
à terra de nascimento é até certo ponto compreensível
que os homens tenham por ela algum sentimento de afeição
em virtude do apego que a convivência diária, desde o nascimento,
provoca nas pessoas, o que as leva a exagerar os louvores ou minimizar
os seus defeitos, conforme o caso. No que diz respeito à afeição
para com aqueles que lhes concedem meios de subsistência, também
é compreensível a benevolência dos escritores. Mas,
apesar disso, Lopes censura os que procedem dessa maneira e se propõem
a seguir rumos diferentes. Isso fica patente quando afirma que:
“Nos certamente levamdo outro modo, posto adeparte toda afeiçom,
que por aazo das ditas rrazoões aver podiamos, nosso desejo foi
em esta obra escprever verdade, sem outra mestura, leixando nos boons
aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo,
quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que avehero.”
Somente em uma hipótese Lopes deixaria de escrever a verdade:
se a fonte da qual retirou a informação fosse falsa. Mas
isto, segundo ele, é errar involuntariamente e não mentir.
De qualquer forma, consciente deste perigo, que é a utilização
de fontes falsas, Lopes precaveu-se e, para não incorrer nesse
erro, examinou e confrontou, com muito cuidado e diligência, livros
e escrituras as mais variadas.
Não há porque duvidar de Lopes, pois, afinal, praticamente
toda a sua vida foi dedicada a esta muitas vezes mal compreendida tarefa.
Não temos dúvida de que ele realmente procurou ser imparcial
e escrever a verdade, mas ele próprio sabia que não era
fácil tal tarefa. Ao encontrar dificuldade para discriminar os
nomes dos fidalgos que ajudaram o Mestre de Avis na defesa do reino,
Lopes parece indignar-se com os escritores antigos que negligenciaram
o fato, porque tinha consciência de que passados alguns anos,
tais nomes tornar-se-iam irrecuperáveis:
“Quem querees vos que tire ja agora descoridom de tamtos anos
os nomes daquelles que outras testimunhas nom tem, salvo esqueeçimento
e ciimza, que aadur pode seer achada? Quem cuidaaes que se nom emffade,
rrevolver cartairos de podres escripturas, cuja velhiçe e desfazimento,
nega o que homem queria saber? Quem achara tamtos bitafes amtiigos,
que os muimentos em que são escpritos, dem testemunho de quem
jaz em elles? Quem comtemtara voomtades alheas e tam desvairados juizos
dos hom ens de guisa que a todos praza o que dizer queremos? Certamente
he cousa impossibell.”
Este desabafo, apesar de deixar a impressão de que alguém
reclamara com o cronista o esquecimento do nome de algum antepassado,
demonstra a consciência de Lopes no manuseio das fontes. Ele sabia
que devia vasculhar tudo o que tivesse ao seu alcance para retratar
a verdade, parecia entender que a história se faz com documentos,
não importando inclusive o tipo, mas compreendia que o passado
não pode ser resgatado em sua totalidade.
E todo o trabalho na busca da verdadeira história tinha uma finalidade
concreta e muito útil, segundo Lopes:
“...non por tall memoria dos mortaaes trazer comssigo algu sprituall
proveito, mas por dar aazo aos que esto ouvirem, de seguir os boos e
homrrosos feitos, per que os de seu linhagem gaanharom gramde e notavell
fama.”
Quer dizer, para Lopes, que conhecia Cícero, não era difícil
conceber que a história fosse uma espécie de “mestra
da vida”. Conhecendo os exemplos dignificantes de seus antepassados,
os coevos teriam um exemplo a seguir. Da história se esperava,
portanto, exemplo moral, mas não somente isso, Lopes vai além:
“... nom ha cousa tam çerta n per que sse os hom es melhor
avisem, daquello que aos autos cavalleirosos perteeçe, que esguardar
nas obras, per que os amtiigos floreçerom, ou ouverom algu comtrairo;
doutra guisa seemdo homem dellas inoramte, quasi çego he nas
que ssom por viienr.”
Espelhar-se nos exemplos dos antigos, era o conselho de Lopes, pois
ignorando-os não haveria nenhuma possibilidade de se vislumbrar
o futuro. Basicamente, portanto, a história servia para lançar
luz sobre os acontecimentos que estavam por vir. Não que o homem
tivesse qualquer poder de interferir nestes acontecimentos, pois, para
Lopes, havia uma lógica conduzindo a humanidade ao seu destino.
Esta possibilidade de se “prever” o futuro, esta “lógica”,
a que nos referimos, somente era concebível em virtude da existência
de um plano divino preconcebido. A história da humanidade nada
mais seria, portanto, que a realização do desígnio
da providência divina. “Deus é providente e construtivo,
tem um plano próprio, no qual não permite a interferência
do homem”.
LOPES EM CONTRADIÇÃO COM O SEU TEMPO?
A
partir das afirmações acima, concluímos que, se
Lopes afastava-se da Idade Média por sua maneira de apurar a
veracidade dos fatos, por seu método de pesquisa, pela sua posição
nacionalista, por outro lado vemos que, ao menos no que diz respeito
à sua concepção de história, não
diferia das idéias dos escritores medievais em geral. Na realidade,
o que Lopes ignorava é que para escrever a verdade não
bastava apenas a coragem, que, aliás, não lhe faltou,
de desvincular-se dos sentimentos de amor à terra e de afeição
aos Senhores que patrocinavam os cronistas. Igualmente não imaginava
ele que toda a sua formação cultural e religiosa, que
o imaginário de sua época é que, na maioria das
vezes, lhe oferecia a medida exata dos conceitos que emitia, e estava
a acompanhá-lo em cada frase que escrevia, em cada posição
que tomava. Por desconhecer a existência deste seu substrato,
que o levava a ser como era e a escrever como escreveu, Lopes jamais
se preocupou em esconder ou disfarçar suas convicções.
De resto, nem havia motivo para que ele procedesse de forma contrária.
Os exemplos, que possibilitam identificar Lopes com a concepção
cristã de história, são abundantes em sua obra.
Tomemos apenas um, por ora: O conde João Fernandes Andeiro devia
ser morto por D. João porque “...o mui alto Senhor Deos,
que em sua providência nenhu a cousa falleçe, que tinha
desposto de o Meestre seer Rei, hordenou que o nom matasse outro senom
ele...”
Por que o Andeiro devia ser morto? Por que pelas mãos do Mestre?
Segundo Lopes, por obra de Deus, já vimos, mas ao ler essa afirmação,
seus leitores deveriam deduzir que Deus tinha boas razões para
assim proceder. Essas razões só podem estar numa espécie
de castigo divino aplicado ao conde pelos seus amores clandestinos com
a rainha Dona Leonor. Quanto ao fato de tê-lo sido pelas mãos
do Mestre, fazia deste, segundo a vontade divina, melhor do que ninguém,
merecedor da ascensão ao trono: vingador de seu meio irmão,
o rei D. Fernando, surgia ele então como o restaurador da moral
da corte. Enfim, a impressão que nos fica é a de que não
passava pela cabeça de Lopes a possibilidade das pessoas agirem
segundo a sua própria vontade: de nada adiantaria ao Andeiro
não querer ser o amante da rainha, como também não
seria possível ao Mestre pretender não se tornar o seu
assassino. Essas decisões já haviam sido tomadas por desígnio
superior, era, nada mais nada menos, o plano de Deus sendo executado;
aos homens cabia a resignação a esta vontade. E apesar
dessas considerações nos soarem de forma demasiadamente
categórica, não temos como deixar de constatá-las,
afinal nem sequer a questão do livre-arbítrio, tão
cara ao tomismo, foi considerada por Lopes. Desconheceria ele, porventura,
a obra de Tomás de Aquino? Desconhecendo-a diretamente, seria
possível admitir que o pensamento tomista não lhe chegasse
através dos padres da Igreja? Hipóteses realmente inquietantes,
sobre as quais não temos muitas pistas, mas que, se as tivéssemos,
serviriam apenas para nos comprovar se a opção de Lopes
pela predestinação agostiniana se processou de forma consciente.
Afinal esta posição fica sempre muito clara, não
se limitando à morte do Andeiro. A mão de Deus estava
em toda a parte, nos mínimos detalhes da vida cotidiana. A Deus
eram atribuídas as vitórias e as derrotas de guerra, Deus
era o responsável pelo medo ou pela coragem dos combatentes.
Deus, enfim, era quem dava rumo à história. Vejamos mais
detalhadamente esses enunciados, através de mais alguns exemplos,
sem o objetivo de acrescentar alguma informação nova,
mas somente a título de reforço ao que vimos afirmando.
Tomaremos por eixo a batalha de Aljubarrota, sem dúvida a mais
importante dentre as que Lopes narrou.
Em agosto de 1385, após ter sido fragorosamente derrotado em
Aljubarrota e com medo de se tornar prisioneiro, o rei castelhano fugiu
apressadamente do local, sem mesmo esperar pelo resultado final da batalha.
Ao chegar em Santarém, altas horas da noite, transfigurado pela
dor do fracasso, pedia a Deus que lhe tirasse a vida e lastimava-se
muito por ter sido um mau rei e um mau parceiro:
“Oo Deus, porque te prougue leixar hu m rey tam soo e tam desemparado
de tantos e boons como hey perdidos! Viuyrey lastimado em todos meus
dias, e mais me vallyrya a morte que a vida. Oo Senhor, porque me leixaste
vemçer? e de quem! e sseerem moortos tantos e tam boons fidallgos?
e a maão de quem! Bem posso dizer que em maa hora vijm a Portugal,
pois que fiquey rey sem gente.”
O rei não considerou sua derrota em função da possibilidade
do efetivo do inimigo ser maior ou menor, não fez nenhuma consideração
a respeito do armamento utilizado pelas forças em confronto,
não analisou nenhuma possível falha estratégica
e nem sequer aventou a hipótese de erros de comando. Isso tudo
pouco importava porque, afinal, o destino da batalha estava nas mãos
de Deus. A questão, portanto, era saber por que era merecedor
da derrota, por que Deus o havia abandonado. E derrotado por quem? pergunta
o rei. Ora, isto quer dizer que se houvesse perdido para um rei de seu
nível, a derrota seria melhor assimilada; todavia, perdeu para
o Mestre de Avis, alguém que ele nem sequer reconhecia como rei.
Tais perguntas ele dirigia, é bom enfatizar, a Deus e não
aos seus comandantes. Em última análise, Deus tinha suas
razões para dispor sobre os acontecimentos terrestres, como melhor
entendesse, pouco significando se os mortais encontrassem ou não
algum nexo nestas razões.
As lamentações do rei castelhano, por certo, constituem-se
numa das muitas passagens em que Lopes reproduziu Ayala, o que nos enseja
um rápido comentário a respeito. Em primeiro lugar, devemos
considerar que Lopes concordou com o texto, caso contrário não
o teria reproduzido. Depois, mesmo admitindo que Ayala, na sua versão
original, tenha polido as lamúrias do rei castelhano para enquadrá-las
em seu discurso narrativo, não há como negar que elas
reproduzem o pensamento daquele monarca a respeito dos acontecimentos.
Finalmente, acreditamos que se Ayala redigiu o texto como o fez, é
porque acreditava também em seu teor. Conseqüentemente,
somos levados a admitir que a concepção de Lopes, relativa
à predestinação da história, não
lhe era particular e muito menos original, ao contrário, constituía-se
na regra geral.
Seguindo o mesmo raciocínio, tomemos agora o sermão proferido
por frei Pedro, na catedral de Lisboa, na ocasião em que os seus
moradores receberam de D. João, as bandeiras e pendões
dos castelhanos vencidos em Aljubarrota, cujo título, “A
Domino factum est istud et (est) mirabille in occullis (nostris)”,
Lopes traduziu como “o muy alto Deus fez esta cousa e he marauilha
amte os nossos olhos”, para sentirmos como um contemporâneo
procurava explicar os acontecimentos, tendo por diretriz a vontade divina.
Lopes narra que, inicialmente, frei Pedro distinguiu milagre de maravilha,
exemplificando, para clareza dos presentes, que não foram milagres,
mas maravilhas o que os feiticeiros do faraó fizeram. Na seqüência,
frei Pedro relatou maravilhas, feitas por Deus, que constam no Antigo
Testamento. Josué venceu cinco reis, porque Deus enviou pedriscos
sobre seus exércitos, e Gedeão, com trezentos homens,
dizimou seus inimigos que eram numerosos como gafanhotos. E, finalmente,
passa a narrar as maravilhas coevas, dizendo que Deus não somente
as realizou como também fez com que alguns as profetizassem.
Descartando a hipótese de ter sido milagre, frei Pedro lembrou
em seu sermão que quando o rei castelhano cercou Lisboa [1384],
tendo a peste se alastrado pelo acampamento, era maravilha ver que somente
morriam os castelhanos e nenhum português, embora os prisioneiros
fossem colocados junto com os pestilentos para contaminarem-se. Em seguida,
conta algumas passagens que, mesmo parecendo maravilhas, não
o eram. Dois escudeiros, um castelhano e outro português, travaram
luta entre si, considerando que teria razão naquela guerra que
se travava entre Portugal e Castela, o reino cujo representante saísse
vitorioso. O fato de Gomes Rodrigues, o representante português,
ter matado seu adversário, poderia ser obra divina, mas poderia
também ter sido mera coincidência. Também não
pode ser considerado maravilha o fato de que cachopos [rapazes] tivessem
aclamado como rei o Mestre de Avis, quando este se dirigia às
Cortes de Coimbra de 1385, que o haveriam de eleger, posteriormente,
rei de fato. “Isto podia ter sido ensinado”, diz frei Pedro.
Nem mesmo as pombas brancas que voavam em torno da bandeira de D. João,
antes da batalha de Aljubarrota, poderiam ser consideradas como sendo
uma maravilha porque, segundo o pregador, isto “podia ser de costume”.
Rejeitando, além do milagre, também alguns outros acontecimentos,
como os citados acima, como sendo maravilhas feitas por Deus, deve ter
ficado fácil para o experimentado pregador convencer aos seus
ouvintes de que os outros episódios que passaria a narrar teriam,
desta vez, realmente, o caráter de maravilhas realizadas por
Deus.
Não foi por acaso, portanto, segundo frei Pedro, que Frei João
da Barroca, um emparedado que residia em Jerusalém, chegou a
Portugal. Tratava-se, diz-nos Fernão Lopes, de um castelhano
que vivia emparedado em Jerusalém e que teve uma revelação
de que deveria ir ao porto de Jafa, onde encontraria uma nau que o levaria
a Lisboa. Isso feito, chegou ele a Portugal e pediu que o levassem a
uma pobre e pequena casa próxima ao mosteiro de São Francisco,
e que o emparedassem aí, deixando-lhe apenas uma pequena abertura.
Permanecendo ali encarcerado, frei João logo começou a
ser tido como santo e muitos o iam visitar para pedir-lhe conselhos.
Dentre os visitantes foi aconselhar-se com ele o Mestre de Avis,
“...pois a tall carrego quall lhe deziam que tomasse, nom soomente
compria aver a ajuda das gemtes, mas as orações e prezes
dos boos, e a ajuda de Deos e sua graça.”
E a ajuda de Deus, a maravilha, está na previsão do emparedado
que lhe pediu que ficasse no reino, pois “a Deos prazia de ell
seer rei e senhor delle, e seus filhos depos sua morte”.
Maravilha também foi considerado, por frei Pedro, o episódio
em que Nuno Álvares Pereira, ao passar por Santarém, mandou
“correger” a sua espada. O alfageme, após o trabalho,
não lhe quis cobrar, dizendo-lhe que aceitaria o pagamento quando
ele voltasse, como Conde de Ourem. Ocorreu posteriormente, quando Santarém
se encontrava em posse dos portugueses, que D. João I, ordenasse
a prisão do alfageme por suspeita de que era aliado dos castelhanos
[setembro de 1385]. A mulher, vendo o marido preso e os seus bens tomados,
lembrando-se do episódio da espada e aproveitando-se da presença
de Nuno Álvares no local, já como conde de Ourem, foi
até ele e pediu-lhe que intercedesse junto ao rei em favor de
seu marido. Nuno Álvares, de fato, foi até o rei, relembrou-lhe
a história e este mandou que o prisioneiro fosse solto e os seus
bens restituídos. Estava confirmada a profecia e feito o pagamento.
Para não nos tornarmos enfadonhos com tantos exemplos, limitemo-nos
a um último. Uma menina, filha de Esteves Eanes Dereado, com
apenas oito meses de idade, teria se sentado por três vezes no
berço e, erguendo a mão, teria dito “Portugall,
Portugall, por el-rey dom Joham”. Isto, evidentemente, muito antes
do Mestre ter sido eleito rei, embora não nos seja fornecida
nenhuma pista da data exata desta proeza.
A HISTÓRIA ERA DETERMINADA POR DEUS
Engenhosamente
esquematizado, o sermão de frei Pedro, induz os ouvintes a crer
que nestes casos não houve milagre e que não se pode tomar
qualquer fato interessante como sendo uma maravilha. Todavia, à
medida em que descaracterizava estes fatos interessantes, coincidências
casuais, enfatizava como verdadeiro e como maravilha praticada por Deus,
a profecia feita por uma menina de apenas oito meses, de que D. João
seria rei. Mas se tal profecia ocorreu ou não, a nós pouco
importa; interessa-nos que através dela fica-nos muito bem caracterizada
a intenção do autor do sermão e do próprio
Lopes, que se não aceitasse o sermão como verdadeiro não
o teria transcrito sem contestá-lo, em mostrar como conclusão
de seus argumentos que “Certamente podemos dizer o que diz nosso
tema que todas estas cousas obrou o Senhor Deus, e som marauilha amte
os nossos olhos”.
E o pregador vai além. Se o rei castelhano não houvesse
quebrado os tratos feitos por ocasião de seu casamento com Dona
Beatriz, filha de D. Fernando, o Mestre de Avis sequer seria regedor
do reino; portanto, de certa forma, o responsável, o instrumento,
pela consecução da obra divina foi o próprio rei
de Castela. Que Deus realizaria esta obra, aliás, já havia
sido profetizado. Em um jantar por ele oferecido, o copeiro-mor da rainha
de Castela, Vasco Martins de Melo, após perguntar insistentemente
quem haveria de barrar o rei, seu senhor, de tomar Portugal, ouviu de
um conselheiro que se fazia presente a resposta de que Deus o barraria.
“E assy foy de feito: que ueendo o muy alto Deus sua maa vontade
e perverssa condyçom, naquell dia da gram batalha lhe tolheu
a homra e o reyno, e deo-(o) a el-Rey nosso Senhor, que o bem mereçya
per uirtudes e caualleyroso esforço: (a) qual cousa he marauilha
ante os nossos olhos.”
Frei Pedro considerava que, numa batalha, pode se explicar pela razão
o fato do vencedor ser o possuidor do maior número de combatentes
e do melhor armamento, todavia, quando o vencedor fosse o mais fraco,
então a vitória seria obra de Deus, maravilha. Em Aljubarrota,
como os portugueses eram numericamente inferiores e muito mal armados
“ca o que tynha cota nom tynha loudel, e o que tynha panceira
nom tiynha bracellotes, e muytos delles com bacenetes sem caras”
tem-se que admitir, segundo o autor, que a vitória não
se deu “per humanal força mas per diuinal juizo, a que
prougue de seer assy, e he gram marauilha ante os nossos olhos”.
Encerrando o seu sermão, frei Pedro eliminou qualquer possibilidade
do homem ser agente da história porque, segundo ele, nem sequer
houve qualquer inovação tática na batalha. Tudo
aconteceu mesmo por obra de Deus, segundo se pode ver pela conclusão
do seu raciocínio:
“Oo que marauylha tam grande, e que jujzo do muy alto Deus, que
aqueel que com jinfijnda multidom de hoste cuydou de gastar a terra
e tomar o reyno, que sseu nom era, fugyo assy del desonradamente que
mais a pressa sseer nom podia: e os portugueeses cobrarom de sseus emmijgos
tam honrosa fama e boa nomeada, qual muy longa velhiçe ja nunca
tirara de memoria! Assy que, esguardadas todas estas cousas com saao
e limpo emtemdimento, achares que todas ob(r)ou o nosso Deus, e ssom
maraujlha ante os nossos olhos.”
Este Deus, sem dúvida alguma, misericordioso, que determina os
rumos da história da humanidade, exige de seus protegidos alguma
retribuição. E é ao próprio frei Pedro que
recorremos para tomarmos um exemplo, porque foi ele que, um dia após
o seu sermão na Catedral, participando de uma reunião
da Câmara, alertou aos presentes sobre os perigos de não
se louvar a Deus após uma vitória. Poderia advir aos ingratos,
pesados castigos. Era preciso louvar ao Senhor com cantar novo e por
isso as pessoas reunidas naquele dia, na Câmara, resolveram que
todo ano, na semana da Assunção da Virgem se fizesse em
Lisboa três procissões, uma no mosteiro da Trindade, outra
no de São Francisco e a terceira em Santa Maria da Graça
do mosteiro de Santo Agostinho. Nestes locais se deveria rezar, respectivamente,
três, cinco e sete missas cantadas. Isso tudo porque foi graças
ao “Senhor Deus e aa ssua preçiossa Madre”, com a
mediação de São Vicente e São Jorge, a quem
seriam também feitas homenagens anuais em seus respectivos dias,
que os portugueses obtiveram a vitória sobre os seus inimigos.
Como vemos esse Frei Pedro também tinha a visão de que
a história dependia da vontade de Deus. É até mesmo
lamentável que nada saibamos sobre ele além de que era
franciscano. Isso, aliás, não seria muito, nem sequer
nos abriria a perspectiva de desenvolvermos algum tipo de raciocínio
amparados na maneira de pensar desses frades. Os franciscanos, fruto
de uma reforma religiosa pela qual passou a Igreja no século
XII, tinham os olhos postos no passado, ao menos no que tange ao tempo
ideal de Cristo e dos Apóstolos, mas em meados do século
XIII apresentavam defecções, cismas e tantas controvérsias
que não nos é possível enquadrá-los em alguma
das várias facções da Ordem e, em conseqüência,
ter uma idéia mais clara sobre o seu modo de pensar. De qualquer
forma, estamos convictos de que se Lopes não concordasse com
as suas idéias não as teria reproduzido e, para reforçarmos
ainda mais este postulado, tendo ainda como eixo a batalha de Aljubarrota,
vejamos a expectativa dos seus principais atores, do lado português.
Nas horas antecedentes ao embate, os comandantes portugueses estiveram
entre os combatentes incentivando-os para a hora decisiva, não
só porque era costume esse tipo de procedimento, como também
porque temiam que os seus comandados se intimidassem ao avistarem as
tropas castelhanas já em formação.
“...os castellaaos forom prestes de todo e sua batalha hordenada;
a qual era tam grande e assy fremosa de ueer que os portugueses nom
parecyam mays antelles que o lume dhuma pobre estrella ante a claridade
da lua em seus perfeitos dyas.”
Nuno Álvares Pereira, a cavalo e tendo um escudo a defendê-lo
de alguma eventual seta inimiga, andava de um lado para o outro orientando
como deviam proceder no momento do choque com os castelhanos, e prevenindo-os
de que todo o alarido que os inimigos provocariam seria passageiro e,
finalmente, que
“fossem fortes e esforçados, auemdo gramde fé em
Deus por cujo seruyço ally eram vijndos, defendendo justa querella
por sseu reyno e por a Ssanta Egreia...”
Da mesma forma, o rei D. João I, após ter se confessado
e recebido a comunhão e as bênçãos do arcebispo
e colocado sobre o peito uma cruz vermelha, pedindo que os seus procedessem
da mesma forma, passou a incentivá-los para a batalha. E, não
bastando esses atos significativos em termos de crença religiosa,
o seu discurso foi entremeado de citações a Deus e a Virgem,
do qual destacamos:
“Amigos senhor(es), nom embargando que nossos emmygos venham a
nos em muyto grande multidom como veedes (...) sseede fortes e nom temaaes
nada, pois que ligeira cousa he ao Senhor Deus sojugar muytos em maãos
de poucos...”
E até mesmo o arcebispo de Braga, muito bem armado, segundo Lopes,
andava entre uns e outros, esforçando-os, absolvendo-os de seus
pecados e dizendo-lhes que repetissem continuamente durante a batalha:
“Et verbum caro factum est”, ao que os ignorantes soldados,
nada entendendo, interpretavam como sendo: “muy caro feito he
este”.
Brincadeiras à parte, devemos acrescentar ainda que Lopes copiou
as três últimas passagens mencionadas de Christoforus,
valendo, neste caso, o mesmo raciocínio já empregado:
se Christoforus colocou essas palavras na boca desses personagens sem
que eles as pronunciassem, fica claro que, ao menos, ele acreditava
nos desígnios divinos; se eles, todavia, disseram-nas realmente,
então todos acreditavam na interferência de Deus nos rumos
da história. Esta é a nossa convicção, embora
não descartemos a possibilidade de que o nome de Deus fosse utilizado
por força do hábito.
Mas esta questão ficará para o próximo capítulo,
onde, com certeza, será reforçada a idéia de que
no período estudado acreditava-se que a Deus cabia o plano geral
da história da humanidade. Por ora limitar-nos-emos a afirmar
que Lopes não se constituiu em exceção, e no que
diz respeito à concepção da história, foi
um homem tipicamente medieval.
A ÍNFIMA PARTICIPAÇÃO DO DIABO
Mas
não apenas ao homem era inadmissível qualquer interferência
no plano divino. O próprio diabo, tão temido durante a
Idade Média, paradoxalmente, desempenhou papel pouco significativo
na história, do ponto de vista de Lopes. Em suas crônicas,
das raras vezes em que aparece mencionado, a maior parte é por
força de expressão: “daaeo ao demo”, “dou
ao demo”, “venho do demo”, “daa-os ao demo”,
“dou oge eu ao demo ty e a teu Rey e as mercees que me el ha de
fazer”, “o demo lhe gradeçe”, “o demo
lh’agradeça”. E, mesmo assim, como se depreende,
dava-se ao demônio aquilo ou aqueles que se tinha em pouca valia.
Em outras oportunidades, quando o diabo aparece interferindo nos acontecimentos
cotidianos, pouco valor lhe é dado, pouco poder lhe é
atribuído. Vejamos como
isso era apresentado, mas antes confirmemos que Lopes acreditava na
existência de Satã.
No capítulo onde trata sobre a vinda de Frei João da Barroca
? o emparedado que aconselharia o Mestre de Avis a permanecer no Reino
? para Lisboa, Lopes, preparando os leitores para o futuro encontro,
aproveita a oportunidade para fazer algumas reflexões sobre as
maneiras como se davam as revelações. Vejamos como se
refere ao demônio:
“As rrevellaçoões outrossi em sonhos som per cimquo
modos, convem a saber: sonho, visom, oraçom, nom sonho, famtasma;
e estes dous modos postumeiros algu as vezes veem per inchimento do
estomago; outras per mimgua de viamda; outras por amor dalgu a pesssoa
a que gram bem queremos; outras vezes per tram temor; outras per aazo
de profumdo pemssamento dhumor menemcolico; e aas vezes per emgano de
Sathanas que sse transfigura em Amgio de Luz; de guisa que a estes dous
modos postumeiros, nenhu pode dar interpretaçom que çerta
seja.” [grifo nosso]
Constatada a crença de Lopes na interferência do diabo
na vida terrena, tomemos agora uma prova do que teria sido uma sua atuação
efetiva. Foi o diabo, segundo os dizeres de Lisboa personalizada por
nosso cronista, quem aconselhou alguns portugueses a abandonarem o Mestre
de Avis, e a bandearem-se para o lado castelhano:
“...emduzidos de todo per spiritu da Sathanas, e maao comselho
de falssos Portugueeses, poucos e poucos leixarom seu boõ proposito,
tornamdo a fazer seus sacrificios, e adorar os idollos em que amte criiam...”
Quer dizer, os adversários é que eram guiados pelo Diabo!
Jamais os partidários do Mestre. Prova é que quando Nuno
Álvares, em sua campanha militar, propôs-se tomar o castelo
de Neiva, ocorreu um fato que bem nos comprova essa afirmação.
Saiu o Condestável com o seu exército da cidade do Porto,
onde pernoitara, e seguia para o seu destino quando foi alcançado
por seus auxiliares que lhe contaram a seguinte história: sua
mula, que lhe carregava a cama, disparara, saíra da cidade pela
mesma porta pela qual ele havia passado e caíra morta. Como interpretassem
isso como um mal sinal, pediam-lhe que não prosseguisse. Nuno
Álvares, entretanto, não lhes dando ouvidos, mandou que
colocassem a sua cama em outra besta e que o seguissem. Assim foi feito,
mas
“dizem que logo em esse dia aveo assy que açerca daquella
porta, homde a azemella moreo, o spiritu malino tomou huum homeem, e
fallou delle muytas cousas; amtre as quaaes disse que el matara aquella
aazemella, cuidando que por a morte della o Comdestabre nom fosse mais
adeante homde auia de fazer muytas e booas cousas, e que el tam gram
fee leuaua comsigo que se nom tornou (por) nenhuuma cousa nem leixou
de comtinuar seu camjnho; e que se repreemdia do que tinha feito, pois
que mais nom aproveitara.”
Portanto, além de guiar os adversários para o lado castelhano
que, mesmo com essa ajuda recebida, acabou sendo perdedor, pouca influência
exercia o diabo. Muito menos, evidentemente, sobre o Condestável,
cuja fé, como diz o cronista, era grande. Quer dizer, se Satanás
teve alguma importância no desenrolar dos acontecimentos narrados
por Lopes, foi justamente no sentido de servir como contraponto ao Bem,
para demonstrar que contra a vontade de Deus, como veremos adiante,
nada podia ser feito.