INTRODUÇÃO
Não foi o acaso que nos levou a escolher as crônicas de
Fernão Lopes como fonte principal de nossa tese. Já tivéramos
a oportunidade de conhecê-las e utilizá-las em nossa dissertação
de mestrado defendida em 1983. Restaram-nos, entretanto, muitas indagações
que, aliadas ao nosso crescente interesse pela obra, ensejaram a elaboração
do nosso projeto do programa de doutorado e que resultou neste trabalho.
Lopes e sua obra constituíram-se, portanto, no eixo central de
nossa tese e, em conseqüência disso, entendemos que deveríamos
conhecê-lo e fazê-lo conhecer, tanto no que diz respeito
a sua vida como no que concerne a sua obra. Não é por
outra razão que o primeiro capítulo deste trabalho intitula-se
“O cronista Fernão Lopes: Vida e Obra”. Nele procuraremos
saber quem foi esse homem, onde nasceu, como iniciou e como encerrou
sua carreira, enfim, buscaremos estabelecer sua biografia. Isso porque
pressupomos que se conhecendo o autor, principalmente sua origem e formação,
torna-se mais fácil conhecer sua obra. E este será o nosso
segundo passo: conhecer a obra de Lopes, posicionando-nos acerca da
polêmica relativa à quantidade de crônicas que escreveu;
discutindo questões atinentes ao plágio, às fontes
utilizadas, inclusive a inovação documental que introduziu
através da observação e análise de túmulos,
moedas e campos de batalha; defendendo a posição de que
Lopes supera-se como cronista, podendo ser considerado um historiador;
comparando o seu estilo de escrever e a sua metodologia com as de outros
cronistas do período, especialmente Ayala e Froissart; analisando
se o vínculo empregatício que o ligava à Coroa
comprometeu sua obra; desvendando, enfim, qual sua concepção
de história.
Verificaremos que o nosso cronista, apesar de sua superior cultura e
de sua elevada preocupação com seu método de trabalho,
foi um homem que não viveu em contradição com o
seu tempo. Antes de ser arquivista, cronista, historiador, era um cristão,
e assim estava impregnado do imaginário que pairava sobre a sua
época. Inconsciente disso não percebeu que o substrato
de sua formação deu-lhe os alicerces para sua obra. É
verdade que em alguns aspectos particularizados difere de seus contemporâneos.
Questão de ênface talvez, inclusive não nos passando
desapercebido, por exemplo, que pela sua ótica se ao homem não
era dada a possibilidade de participar do desenrolar da história,
igualmente o Diabo tinha uma ínfima participação.
Quer dizer, uma atitude paradoxal porque o “horror diabolicus”
dominava a consciência cristã daquela época sendo
que “Satanás e seus demônios constituem a ameaça
cotidiana, tramando incessantemente para a perda dos homens, sobre os
quais paira a terrível angústia dos tormentos da perdição
eterna”.
A presença de Deus nas crônicas de Lopes é tão
marcante que optamos por dedicar um capítulo especialmente ao
assunto, “O uso do nome de Deus e as manifestações
da presença divina na obra de Fernão Lopes”. Nele
elencaremos e analisaremos as diversas formas adquiridas pelas evocações
feitas a Deus, aos Santos e a Mãe de Deus naquela época,
procurando demonstrar que embora elas nem sempre exprimam uma convicção,
pois muitas vezes eram ditas por força do hábito, demonstram
ao menos a incapacidade do homem medieval em dissociar as práticas
rotineiras da vida cotidiana do Sagrado.
Mesmo quando passarmos a apreciar “As cerimônias pertinentes
aos pilares das relações sócio-políticas
do medievo português em Lopes”, uma questão mais
afeita à realidade social que ao imaginário religioso,
verificaremos a presença do Sagrado, especialmente quando estivermos
demonstrando que a Igreja procurou transformar em Sacramento, cerimoniais
laicos. Pretendemos enfatizar que as coroações, armação
de cavaleiros, a homenagem e o juramento de fidelidade, além
do caráter de investidura, revestiam-se de um simbolismo muito
intenso, pois os símbolos instituíam aos seus respectivos
portadores a aura que os legitimavam e os distinguiam nos cargos ocupados,
tornando mais fácil a compreensão de seus significados
pela grande maioria inculta da época.
Tão forte era o apelo ao Sagrado que a instituição
encarregada de gerenciá-lo passou a desfrutar de tanto poder
a ponto de interferir na organização social daquela época.
É o que trataremos no quarto capítulo: “O Casamento
e as suas modalidades marginais”, procurando comprovar que a Igreja,
com o apoio integral da Monarquia, especialmente a partir do advento
da dinastia de Avis, procurou marginalizar as uniões maritais
que fugissem aos moldes por ela estabelecidos. O alcance de suas pretensões
de impor o “casamento de bênção” entretanto
encontrará restrições tanto na tolerância
do clero como na volúpia ou nos interesses políticos de
muitos governantes que continuarão a adotar formas tradicionais
de união, como o “casamento de pública fama”
e o “casamento por juras ou furto”. Quanto ao concubinato
e à prostituição veremos que, se persistiram, passaram
a carregar o estigma de pecado.
Embora saibamos que Lopes jamais teve a preocupação de
ultrapassar com suas narrativas os limites do campo político-administrativo
e militar, com ênfase para os feitos cavaleirescos, procuramos
extrair de suas crônicas elementos que nos possibilitassem entender
o comportamento sentimental do homem medieval português. O resultado
encontra-se no quinto capítulo, onde analisaremos os sentimentos
que aparecem com maior freqüência em sua obra. O amor, a
inveja, a cobiça, a alegria, o prazer, o ódio, a sanha,
o medo, a apreensão e a incerteza serão objeto de nossa
apreciação. Avaliaremos também o domínio
dos homens daquela época sobre esses sentimentos e, finalmente,
duas maneiras muito significativas de expressão daquilo que era
sentido: o riso e do choro.
Reservamos o sexto e último capítulos de nosso trabalho
para a abordagem de um tema em voga na historiografia contemporânea:
os marginalizados. Os escolhidos, seja por motivos religiosos, econômico-financeiros,
raciais, morais, sexuais, sociais ou estéticos, serão
os mouros e judeus, as mulheres, os mercenários e os aleijados
e pobres. Desejamos demonstrar que a marginalização desses
grupos era variável e quando havia perseguições
nem sempre eram implacáveis. Os mais visados eram os judeus,
embora as leis portuguesas dessem a eles e aos mouros o mesmo tratamento
discriminatório; as mulheres e os mercenários nem sempre
e nem em sua totalidade eram marginalizados, portanto haveremos de tomar
o cuidado de distinguir em que circunstâncias o eram; da mesma
forma procederemos em relação aos pobres e aleijados,
que eram deixados à margem, desprezados, por algumas razões,
mas que tinham, segundo o pensamento da época, uma utilidade
muito importante: a de servirem de passaporte para o céu aos
ricos caridosos que os sustentavam com suas esmolas.
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